Uma Conversa Sobre Marketing Societal, Filantropia Sincera e Ética das Empresas

Eduardo Martins*

“Já repararam que durante as famosas lives de cantores famosos muitas empresas se valem da maciça audiência para fazer doações de alimentos, produtos de higiene, limpeza e outros itens que a população mais carente tanto precisa? Se perguntaram por que tais gestos humanitários e de doação ao próximo são feitos nesses instantes em que milhões de pessoas assistem a determinado show? 

Esse tipo de marketing societal (ou filantrópico) serve para mais do que simplesmente fazer o bem. 

Vivemos um tempo de caos, algo que não se via desde a gripe espanhola dizimar milhões de pessoas no começo do século XX. Mas durante a pandemia atual, vimos aflorar no ser humano a generosidade e amor que os move e transforma a dificuldade em união e doação. É muitas vezes o gesto de estender a mão o diferencial entre salvar ou perder uma vida. Vimos isso em pessoas físicas e, também, nas jurídicas. 

Essas empresas que adotam posturas sociais e fazem a diferença na vida dos mais necessitados ganham destaque na mídia pelo ato de gentileza que fazem, aplausos da sociedade além de muitos “likes” e “shares” nas redes sociais. Mas tal gesto nobre precisa ser noticiado? Por quê? Com que finalidade? 

Nos acostumamos a escutar durante as lives: “Nossa, o supermercado X está doando 5 toneladas de alimentos! Obrigado X pela doação!”. Essa prática típica do Terceiro Setor tem o real interesse de vincular o nome da empresa a atos sociais que ajudam os mais necessitados. Em suma, é uma estratégia de marketing que faz o bem e, em troca, traz uma percepção positiva à população sobre o lado humano daquela empresa. 

E quando pensamos nesse viés “marqueteiro” várias dúvidas surgem em nossa mente: 

Existem empresas que doam somente para ganhar visibilidade frente ao caos? 

É legítimo esse tipo de estratégia?

Essas empresas não deveriam ter gestos sociais independente da pandemia? 

Como identificamos possíveis fraudes nesse processo? 

Há como acompanhar se a doação realmente aconteceu? 

Empresas líderes em reclamações no PROCON por parte de clientes tentam reverter parte da “má fama” que possuem com esse tipo de prática? 

Nada contra o trabalho social e as pessoas que serão atingidas positivamente pelas doações, mas mostra uma ponta que passa despercebida. Vamos repercutir mais a respeito”?

Esse texto acima não é meu – faz parte de um release que recebi há poucos dias e me chamou a atenção porque aborda algumas questões que debato há alguns anos e que explorei novamente em artigo que faz parte dessa edição. O release sugeria um professor como fonte e aceitei o convite para uma entrevista, em parte reproduzida abaixo.

Bruno Peres tem MBA em marketing estratégico pela USP, foi líder global de inteligência de marketing na sede da ONU em Nova York, trabalhou e liderou equipes em empresas como Groupon, Ifood, Discovery Channel, Unicef e na Agência de Refugiado da ONU, já foi premiado globalmente por seus cases na área de marketing e planejamento digital,  ministrou aulas e palestras em 9 países, atua como docente desde 2010 e possui as mesmas dúvidas que eu sobre a sinceridade desse surto de solidariedade empresarial que acompanha o coronavírus.

Ele lembra que há diferenças entre o que se denomina de marketing social do marketing societal, que afirma ser um termo que não se utiliza muito nos meios de comunicação no Brasil. “É um marketing socioambiental praticado por empresas do segundo setor, empresas com fins lucrativos. Já o Marketing Social é realizado por empresas do terceiro setor, aplicado por ONGs, Institutos, Fundações com um fim filantrópico. Eles estão relacionados, mas têm origens diferentes. É importante definir esses termos para que a gente não possa diminuir o trabalho de uma Organização Social, que tenha um trabalho sempre transparente nesse sentido”.

Para o professor, nessa linha da hipocrisia, existem alguns caminhos para a população identificar oportunismo. “E isso vem muito da cultura de doar – afirma – o que não é muito comum no brasileiro. É muito comum nos EUA e na Europa, onde esse conceito de doação é mais forte, mas também a cobrança é muito mais forte. Por isso é muito bacana a gente bater um papo sobre isso, os veículos de comunicação falarem sobre isso. Quanto mais transparente, mais noticiado, mais pessoas cobrarem isso das organizações, mais fácil será rastrear essas doações até seu ponto final e entender quais empresas são bem intencionadas e quais são mal intencionadas. Então é importante a população falar sobre isso, os meios de comunicações também. Existem algumas formas de a gente entender o mero oportunismo e a gente entender qual faz o trabalho honesto de verdade, com boas intenções, e buscando o melhor para a sociedade”.

Esse encontro foi mais uma conversa do que uma entrevista em si. Serviu para expormos pontos-de-vista a respeito da atuação das empresas durante a pandemia e o que se espera delas após esse momento único da nossa história.

Sobre essa questão de marketing social, a maioria das empresas ainda está vendo isso como um ponto de marketing, “vamos mostrar que somos uma empresa cidadã”, que ajuda o hospital do câncer. Por isso discuto um pouco essa questão de marketing – deveria ser mais uma questão de causa. Você concorda?

BP – Sim, esse é um caminho que acontece, que as empresas têm tomado e, por ora, talvez seja um caminho inevitável. As empresas veem isso, principalmente depois que elas perceberam a importância do relacionamento mais de longo prazo com o cliente, fidelizar o cliente e, quanto mais a sociedade se mostra ativa e reivindicadora de direitos, as empresas começam a ter mais responsabilidade. E cada vez mais as marcas acabam se tornando entidades, e com certeza muitas empresas se utilizam dessas causas para se autopromover. Daí que é importante a busca por um lastro, porque isso também é importante para quem recebe. Então as empresas, em geral, quando analisam ações filantrópicas, seja uma campanha, seja uma doação, seja patrocínio de um evento cultural ou campanha solidária, ela oferece parte de seus lucros, ou fornecendo doações mensais, para organizações do Terceiro do Setor, para que essas situações filantrópicas atinjam a sociedade. É o intermediário entre o beneficiado final e o doador. A meu ver o mais importante, e uma das grandes responsabilidades como filtro disso, está no Terceiro Setor. Quando eu trabalhei na Unicef, e mais recentemente na agencia de refugiados da ONU, o mais importante éramos entender quem era a empresa que queria fazer parceria com a nossa marca.

Por isso é importante o filtro…

BP – “Quando eu recebo uma quantia de dinheiro, doações de alimentos, ou convite de parceria ou para patrocínio, é importante esse filtro do Terceiro Setor exatamente para identificar alguns dos pontos que você comentou – as empresas que querem apenas se beneficiar num momento de pandemia de proporções únicas, a ajuda final para o público, a parcela mais carente da comunidade – é sempre necessário. Quando você está falando de fome, de abuso, de violência, o apoio a essas pessoas, no final das contas, é o mais importante. Mas é importante também essas Ongs saberem de onde vem esse dinheiro, se tem origem, se é uma empresa que está lotada de acusações de malefícios ao consumidor, não arca com suas responsabilidades fiscais e está fazendo doação. Primeiro que ele pode destruir todo um projeto cultural/social de muitos anos em troca apenas de uma doação que a curto prazo alimente uma família, mas a longo e médio prazo aquilo nunca mais vai vir e pode destruir o trabalho de uma Ong de 20, 30 anos, e aí aquela comunidade vai sofrer”.

Muitas empresas entram nesse mercado de causas, de marketing societal, em busca de branding?

BP – Sim, é uma prática comum infelizmente; por outro lado tem muitas empresas que criaram seus próprios Institutos e ajudam milhares de famílias. Acho que as duas realidades acontecem e é importante também a gente valorizar alguns institutos que utilizam lucros de empresas com fins lucrativos, mas para fazer o bem, já que a empresa teria lucro de qualquer jeito.

Você concorda que essa pandemia pode trazer, quase até como obrigação, de as empresas terem uma atuação mais direta e atuante em relação a causas sociais no Brasil, que são terríveis? Depois dessa pandemia elas não poderiam chegar à conclusão de que podem ter uma participação mais ativa, não só doando dinheiro para uma Organização Social, mas fazer uma parceria público-privada com Governos para interferir nas soluções de problemas graves como saneamento básico, de construção de escolas, de apoio a professores e que, aí sim, serem reconhecidas como atuantes sinceros e ativos da sociedade?

Bruno Peres possui site voltado para ferramentas de marketing digital.

BP – Concordo, mas acho que esse caminho precisa ter um respaldo do Governo. Pela minha experiência, trabalhando no Terceiro Setor, trabalhando na área de Comunicação e Marketing de grandes empresas, vimos resistência de parte do governo de aceitar algumas ajudas que não fossem relacionadas a algum tipo de problema – um desmoronamento, um incêndio, ou situações precárias específicas. Mas os governos, municipais, estaduais e federais, até de outros países, tendem a não assumir que ações assim são beneficentes por que isso vai contra a comunicação política, de que não sou capaz de gerenciar minha própria cidade, meu próprio Estado, meu próprio País. Então isso tem de partir do próprio Governo e estimular esse tipo de parceria público-privada – isso seria algo sem precedentes, embora eu pouco tenha visto. Poderia ser um caminho novo de parcerias nesse sentido”.

Mas se a gente for esperar iniciativa de Governo isso não vai acontecer nunca – tem 100 anos de experiência para provar isso. A gente sabe que elas não podem interferir diretamente, num caso de saneamento básico, por exemplo, mas elas podem dizer queremos fazer, temos planejamento para fazer e pressionar os Governos. Se as empresas realmente quisessem, e elas têm força para isso, e isso está mais claro agora, fazer um mutirão de empresas que realmente se interessem pelo País… porque não interessa a elas que existam 50 milhões de pessoas com nível zero de consumo. Quem sabe com essa pandemia elas vejam que podem ajudar bem mais do que hoje e forçar os Governos a fazerem, porque se dependermos deles…

(Essa entrevista foi realizada antes do movimento que companhias globais estão fazendo, com corte de anúncios, para forçar Facebook, Twitter e outras de mídias sociais a desenvolverem mecanismos que coíbam mensagens de ódio, racismo, e que a elas já custaram bilhões de prejuízos, o que reforça nosso argumento: se as empresas brasileiras se juntarem com um objetivo, mudanças importantes poderão ser feitas porque elas têm a força).  

BP – Eu acho que esse é o principal papel do profissional do Marketing Societal. Esse é o papel que deveria ser investido por todas as empresas, ou os aglomerados de empresas, ou em associações de classe. Sempre deve ter alguém nas empresas para fomentar isso. Quando alguém diz vamos ter uma campanha para aumentar o nosso lucro… tem de ter alguém para levantar a mão e lutar por essa representatividade – ok, nós vamos ter um lucro 10 vezes maior, mas quanto disso se vai destinar para nossa Fundação ou para nosso Instituto, para aquela parceria com tal Governo, ou com a Ong. Se não tiver alguém ali para levantar aquela bandeira o tempo todo, vai acabar a pandemia e muitas delas vão voltar para aquelas ações que sempre tiveram.

Por que aí entra a desculpa delas como carga tributária, carga trabalhista, etc. Sempre acaba ficando por último essa área socioambiental. O que defendo é que essa área de comunicação e marketing societal dentro das empresas deveria ser mais ampla, deveria a empresa de X porte dar mais … porque aí concordo com você, muitas delas se ligam em pequenas campanhas como Teletom, Hospital do Câncer, naquela ótica específica. A gente sabe que algumas fazem planos de longo prazo, mas acho que esse é o principal caminho.

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Até porque está provado que o modelo que existiu até hoje não funcionou. O que é mais essencial para um bem-estar social a maioria da população não tem. Então um novo olhar é necessário e você olha o lucro dessas empresas, é fantástico e elas vivem num País que está permitindo às grandes empresas, principalmente, e Bancos nem se fala, um bem-estar que a população em geral não tem. Então acho que elas teriam a obrigação de participar desse processo de criação de um País melhor. Não é só dar um dinheirinho pra ONG e depois dizer olha, nós estamos ajudando isso, aquilo – acho que deve ir muito além disso, não?

BP – Acho que agora você tocou num ponto principal. Deveria vir das empresas essa responsabilidade porque as empresas movem o mundo. Quando uma empresa tem consciência social, os trabalhadores também, seus consumidores… Quando ela tem esse posicionamento, todo mundo se beneficia disso. Esse é o resumo de nossa conversa: se os Governos pensassem, se as empresas pensassem assim e os comunicadores tivessem essa matéria nas Faculdades e entrassem assim, pensando nesses três grandes pilares, a sociedade iria se beneficiar não só quando precisa.

Realmente o País precisa de um novo olhar, em todas as suas faces…

BP – Concordo, principalmente para evitar que enganadores surjam nesse momento, que está dando uma cesta básica aqui, mas está dando golpe com eletrodoméstico do outro lado; o cara está com um monte de acusação no Procon e doando um eletrodoméstico, uma comida…

*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.

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