Pelo orgulho com que mencionou a doação destinada à Fundação Gol de Letra, imaginei que era o dono do restaurante que estava me entregando a conta daquele almoço. Era. Já tinha estado ali antes, algumas vezes, e o valor do serviço estava na casa dos 10% e me lembro porque esse é um item que costumo prestar atenção e recomendo a todos que façam o mesmo. A porcentagem lançada, naquela conta, era de 12%.
Cheguei a indagar: “o serviço subiu para 12%?”. Sim, respondeu.
Nem quis me alongar, porque minha vontade real era perguntar: “você aumentou o valor do serviço para cobrir o custo da doação?”. Mas me contive por dois motivos: a) jamais ele iria admitir isso; b) poderia estar cometendo uma injustiça e ofender a quem estava querendo fazer o bem.
Mas é provável que ele tivesse feito aquilo mesmo. E não estaria sozinho, pois a pretexto de ajudar instituições ou adolescentes da periferia, grandes, pequenas e médias companhias alardeiam que estão praticando “marketing social” com o objetivo de dar ao seu público a impressão de que se trata de empresa socialmente responsável.
Philip Kotler, guru do pessoal de marketing e que escreveu o primeiro livro com a expressão Marketing Social, conta que se debruçou sobre o assunto depois de, muitos anos antes, um professor haver levantado a seguinte questão: “Por que não podemos vender fraternidade como vendemos sabão?”.
Kotler se perguntava se o marketing poderia ser usado para vender ideias como fraternidade, paz, exercitar-se regularmente, comer mais alimentos nutritivos. Dizendo-se cada vez mais entusiasmado quando pensava no assunto, afirma que resolveu desenvolver, junto com o colega Gerald Zaltman, “uma área que pudesse chamar de marketing social”.
O parágrafo mais ilustrativo no livro de Kotler (Minhas Aventuras em Marketing, Editora Best Business, 2017, pág. 54) é:
“Zaltman e eu estávamos examinando uma questão mais ampla, ou seja, se o marketing poderia ser usado para persuadir as pessoas a adotar comportamentos que seriam melhores para elas, para sua família e amigos, e também para a sociedade em geral. Decidimos chamar essas ações de “marketing social”, como uma abreviação de “marketing de causa social”. Mal sabíamos que, mais tarde, o marketing social seria confundido com “marketing de mídia social”, expressão que alguns praticantes do marketing da mídia social reduzem hoje para marketing social”.
Touché! É exatamente isso o que acontece no Brasil (com poucas exceções, como sempre). E, no nosso caso, o erro já começa na origem, porque as expressões marketing e social não são compatíveis – ou, pelo menos, não deveriam ser – e essa é uma opinião que sempre defendi. A ideia imaginada por Kotler é utilizar as ferramentas usadas no marketing para beneficiar causas, mas elas não devem ser utilizadas como ações de marketing como se faz por aqui. Essa é a questão.
O ing da palavra marketing é indicativo de gerúndio, que por sua vez é uma ação no tempo ligada a um verbo: To Market (referente a promoção, publicidade, comercialização). E no Brasil, qual é o verbo? Não tem. Valho-me dessa formulação e da citação a seguir feitas pelo consultor Marcio Schiavo, pessoa que ainda vou mencionar mais nesse artigo: “Não se pode dizer mercadando”. O sentido teria que ser “atuando no mercado”, mas não há palavra em português para isso.
ORIGEM – A humanidade sofre com inúmeros problemas como pobreza, fome, doenças, poluição, degradação ambiental. As ferramentas e os princípios do marketing podem afetar de alguma maneira essas áreas problemáticas? Sim, podem, e foram essas indagações que originaram a ideia do marketing social.
Mas no Brasil se confundiu tudo (em outros lugares também, mas aqui é o que interessa). Os cartões VISA, por exemplo, lançaram uma campanha chamada VISA CAUSAS, cujo anúncio traz a seguinte mensagem: “Aproveite que você é cliente Visa e escolha uma causa para apoiar. A cada pagamento, a Visa faz uma doação para a causa que escolher sem você pagar nada a mais por isso”. A “causa” para o cliente escolher está entre várias instituições participantes da “promoção”, tais como Doutores da Alegria, Gol de Letra, Projeto Tamar, Institutos como Luísa Mel, Gustavo Kuerten, Ayrton Senna e várias outras, todas com elo comum – são conhecidas do grande público, midiáticas portanto, e que já recebem milhões de várias direções.
Taí um exemplo típico do “marketing de mídia social” citado por Kotler. A causa maior, na verdade, é a da empresa, porque socialmente ela não tem causa nenhuma. O que ela tem é uma estratégia de usar a causa dos outros para agregar benefício. Quer ajudar essas entidades? Cadastre-se e compre com Visa, diz o anúncio.
PUNIÇÃO – Marcio Schiavo é diretor-presidente da Comunicarte (www.comunicarte.com.br), empresa de consultoria em comunicação e gestão socioambiental, voltada para a criação, planejamento, implementação, supervisão e avaliação de projetos desenvolvidos por organizações privadas, governamentais, da sociedade civil ou de cooperação internacional. Possui 40 anos de experiência no setor e a lista de clientes disponível em seu site indica o nível de respeito que tem no mercado.
Marcio deu um longo depoimento à Marketing Cultural, o qual recomendo a leitura para quem quiser ter uma visão mais profunda sobre responsabilidade social. Várias questões foram abordadas nessa conversa, envolvendo o que está se fazendo de bom e de ruim atualmente, mas separei este trecho em vídeo onde ele alerta que as empresas precisam tomar cuidado sob o risco de serem punidas, mais cedo ou mais tarde, pelo mercado, por não estarem fazendo o dever de casa corretamente. E alerta: o lucro, a qualquer custo, acabou.
Palavras sensatas. Muitas empresas querem fazer promoção às custas de uma ação social.
Vou citar outro exemplo clássico do mix difuso entre marketing e social. A agência de publicidade NBS, cujas letras se referem à expressão inglesa no bullshit, anunciou em novembro passado a criação do nbs SoMa (acrônimo de Social Marketing). No release distribuído para a imprensa estava escrito que:
“O novo departamento vai desenvolver e implementar projetos que promovam impacto positivo nas periferias das grandes cidades brasileiras, começando com projetos em São Paulo e Manaus. Na nbs SoMa, todos os projetos vão seguir a mesma orientação: precisam produzir alguma transformação na realidade dos moradores e, ao mesmo tempo, precisam gerar retorno financeiro e/ou reputação para as marcas envolvidas”.
Retorno financeiro e/ou reputação para as marcas envolvidas? O que ela está fazendo então? Intermediando negócios? Se valendo de sua posição para atrair patrocinadores e divulgar os projetos na mídia com a marca das empresas? E o release não deixou de lembrar: “os projetos da nbs SoMa podem ser viabilizados por meio de verba direta ou com verba incentivada”.
Quer dizer: a verba utilizada nos projetos é por meio de leis de incentivo; do bolso da empresa não sai dinheiro e se sair é muito pouco como ficou claro nas duas primeiras ações divulgadas pela SoMa. E novamente me valho de texto distribuído pela assessoria da NBS, recebido em 23 de novembro:
“Na noite desta quinta-feira, 22, a nbs SoMa lançou, em parceria com a Sanofi, o projeto Biografias Colaborativas. A iniciativa, patrocinada pela empresa via Lei Rouanet, transformou as histórias de cinco empreendedoras da periferia de São Paulo em livros, dando voz a mulheres que são consideradas modelos por suas trajetórias e inspirando outros membros das comunidades”.
Essa ação foi proposta ao MinC pela ISL Produções e Eventos, que teve verba de captação autorizada pelo então Ministério no exato valor de R$ 629.762,65 e um único patrocinador, a Sanofi, que depositou na conta do projeto R$ 629.762,65. Ela foi enquadrada no Art. 18 da lei Rouanet, que permite à Sanofi abater esses seiscentos e tantos mil de seu Imposto de Renda devido.
Outro projeto foi divulgado no dia 6 de dezembro, também anunciado por release:
“Dar vida e voz ao texto de talentos da periferia por meio da arte. Essa é a proposta do Literatura Exposta, novo projeto da NBS SoMa que reúne dez grandes autores das periferias cariocas e dez artistas plásticos em uma exposição de artes visuais na Casa FrançaBrasil, um importante centro de cultura no Rio de Janeiro. O projeto permitiu traduzir em artes visuais e performances a emoção de cada um dos textos selecionados”.
E finaliza informando: “O projeto Literatura Exposta é apresentado pelo Ministério da Cultura, pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, com o patrocínio da Estácio, BMA Advogados, Aliansce Shopping Centers, Posterscope e NBS, por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura Lei do ISS”.
Não se discute aqui a relevância dos projetos patrocinados – foram dois que conseguiram realizar seus sonhos e isso é sempre bom e não importa a forma desde que seja lícita. Mas o que a agência está fazendo não é marketing social; ela faz o que fazem centenas de produtores culturais ou agências de captação de recurso que produzem e captam ou viabilizam patrocínio para iniciativas de terceiros. É Marketing Cultural, não é Marketing Social.

É OUTRA COISA – Marketing Social (uso essa expressão pela falta de outra, porque não concordo com ela) não pode ser uma estratégia mercadológica para forçar vínculos com a marca ou vender mais produtos ou mais serviços. A empresa deve pensar na sociedade antes de si mesma, deve abraçar uma causa que seja transformadora, que mude paradigmas, que influencie comportamentos e valores saudáveis. Ela necessita mostrar grandeza de propósito e essa, sim, será reconhecida; essa, sim, gerará a percepção de que, de fato, é uma Pessoa Jurídica socialmente responsável e com isso vai obter, lá na frente, a vantagem competitiva que tanto almeja. A percepção do consumidor fará isso; não o marketing.
Quer investir em esporte? Ótimo. Quer investir em cultura? Beleza. Quer investir no social? Invista, só que esse investimento tem outro caráter, bem diferente dos dois anteriores, caso queira executar um plano genuíno de responsabilidade social.
E isso não quer dizer que não se deva utilizar leis de incentivo – centenas de Organizações Sociais dependem das aplicações que as empresas fazem com o uso desses mecanismos e, para muitas, não haveria sobrevivência sem eles. Se a lei faculta, é legítimo. Mas esse é um dinheiro “dos outros”, não da empresa, e é preciso se lembrar disso antes de sair por aí se anunciando como empresa “cidadã”.
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Todos os exemplos citados aqui beneficiaram pessoas. Não se sabe se o dono do restaurante usou de artifício ou não para beneficiar a Fundação Gol de Letra, mas pelo menos alguma coisa está fazendo. A NBS está confundindo conceitos, mas os realizadores dos projetos agradecem a parceria; e a Visa, que pensa ter descoberto um veio simpático para estimular venda e ficar bem na fita, informa no website do VISA CAUSAS (//vaidevisa.visa.com.br/causas/) que já atingiu 51 milhões de doações e, como afirma que envia um centavo de cada compra para a Instituição que o usuário escolher, 51 milhões de centavos já foram distribuídos. Muitos agradecem, portanto.
Mas alguém quer defender a causa de combater a diarreia e a disenteria, que são responsáveis pelos maiores números de mortalidade infantil em nosso País? Nãããão. Como lembra Marcio Schiavo, se é possível estar ligado ao combate do câncer infantil, por exemplo, quem vai querer se associar à diarreia? Mas digo sem medo de errar: alguma empresa genuinamente responsável deveria, pois no momento em que seu público começasse a perceber o bem que ela estaria fazendo, marketing nenhum seria capaz de atrair um retorno de imagem tão positivo.
Espero que as empresas citadas entendam o espírito dos comentários feitos aqui, pois o debate sobre o “marketing social” que se pratica no Brasil exige reflexões e este é o propósito maior deste artigo. Concordar ou não é um direito de todos; refletir também.
Para finalizar, convoco a quem se interessa por esse assunto a assistir ao depoimento que Marcio Schiavo deu para a Marketing Cultural. Está todo em vídeo e, garanto, não tem parte chata. Tudo é relevante.
Boa causa para todos.
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.