Solidariedade S/A. Há Uma Impressão Digital Invisível Ali

Eduardo Martins*
Imagem de Yarolsav Danylcheco

Vamos ser diretos. Quais dessas empresas, que desfilam sua generosidade no quadro Solidariedade S/A, no Jornal Nacional, têm um compromisso genuíno e permanente com as causas sociais? Certamente há, várias, mas quem tem certa experiência com comunicação, jornalística ou empresarial, há de notar em algumas campanhas a impressão datiloscópica firmada por usuários do marketing de oportunidade.

As doações, por quem quer que seja, num momento como o que vivemos, podem salvar vidas, minimizar sofrimentos, mas podem também, quiçá, despertar em muitas empresas a consciência de que devem ir além, transformando sua responsabilidade social em um bem maior do que um escambo entre ação e retorno de imagem.

Porque no Brasil ainda persiste uma visão estrábica sobre as funções do marketing social, expressão cunhada por Phillipe Kotler para definir o uso das ferramentas de marketing aplicadas para auxílio no combate aos inúmeros problemas que assolam a humanidade como a pobreza, a fome, doenças, poluição ou degradação ambiental. O autor já disse que marketing social foi pensado como uma abreviação do “marketing da causa social”, e que suas ideias foram inicialmente aplicadas em problemas como superpopulação em determinadas regiões, no combate ao hábito de fumar e no enfrentamento à epidemia do HIV.

Tempos depois confessou:

“Mal sabia que, mais tarde, o marketing social seria confundido com marketing da mídia social, expressão que alguns praticantes do marketing da mídia social reduzem hoje para marketing social”.

Considero essa expressão possuidora de um erro de origem – não se deve misturar marketing com social, mesmo sabendo que a intenção de Kotler tenha sido a aplicação das mesmas ferramentas que promovem vendas em causas específicas que beneficiem a sociedade. O termo marketing, porém, confunde o processo, já que empresas, especialmente as brasileiras, veem nesse caminho uma janela para vender a imagem de que, apoiando uma instituição, por exemplo, são socialmente responsáveis e por isso têm o direito de espalhar isso aos quatro ventos.

O direito é legítimo, mas não é esse o espírito que deve prevalecer.

Acabei de ler o Relatório de Sustentabilidade publicado pela Ford Company, nos Estados Unidos. Separei um trecho que afirma o seguinte em sua apresentação:

“O Relatório de Sustentabilidade da empresa também aborda a questão da injustiça social – cujo peso recai desproporcionalmente sobre a comunidade afro-americana e uma questão sobre a qual a sociedade e as empresas não podem mais ficar caladas. A Ford viu essa disparidade entre os membros da sua equipe afetados pelo COVID-19 e no legado de disparidades econômicas na sua própria cidade natal, Detroit. Não há soluções fáceis para problemas sistêmicos de longa data. No entanto, a Ford está comprometida em ouvir, aprender e ser líder em cocriar soluções que melhorem a empresa e a sociedade”.

Se a empresa vai cumprir a promessa só o tempo dirá, mas criar soluções ou ajudar a encontrar soluções é o espírito que deve prevalecer, de forma a que os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, lançados pela Organização das Nações Unidas, não fiquem apenas nas intenções.

“CORRIDA” – Esses argumentos não buscam invalidar os esforços que empresas fizeram, e continuam fazendo, para amenizar o impacto do vírus em nossa comunidade, mas algumas coisas transparecem desse inédito espaço publicitário oferecido por uma organização que tem o histórico de nunca citar nome de patrocinadores a não ser os seus: 1) a sensação de “corrida” para que departamentos de marketing encontrassem soluções que pudessem ser mostradas “naquele quadro do Jornal Nacional”; 2) os presidentes ou CEOs serem os porta-vozes das “boas notícias”, não os responsáveis pelas áreas de responsabilidade social; 3) os milhões aplicados em dinheiro ou produtos oferecidos são quase nada diante do lucro que essas grandes companhias obtêm a cada ano.

Vou citar exemplo para ilustrar o raciocínio. A Honda distribuiu para a imprensa release e um vídeo de 3’20” onde se vangloria por ter distribuído 80 respiradores restaurados para diversos hospitais do interior de São Paulo. Certamente essa ação impactou diversas pessoas e quem recebeu teve motivo para elogiar a empresa, mas a contrapartida foi o agradecimento explícito, onde enfermeiros levantaram cartaz de agradecimento à Honda, diretores de hospitais entoaram um obrigado Honda e o “gran finale” foi um aplauso geral à companhia.

A marca Honda foi mostrada 21 vezes e seu nome mencionado 10. É claramente uma peça de marketing com fins de propaganda.

Isso não anula a iniciativa filantrópica da companhia, mas foi em algo assim que Phillip Kottler identificou a confusão entre marketing social e marketing de mídia social.

(VER VÍDEO)

ERRO – Foi esquecido, ignorado ou desconhecido que, nesse tipo de comunicação, o centro é a causa, não a organização, como foi bem lembrado em trecho do excelente Guia de Comunicação e Sustentabilidade, publicado nesse ano pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS): “o esforço por ocupar o centro do cenário e se promover é mal recebido pelos militantes das causas e pela sociedade em geral que, em vez de propósito, enxerga uma tentativa de marketing. O entendimento de que a comunicação por causas é, acima de tudo, o estabelecimento de um diálogo com temas e grupos que compartilham de propósitos compatíveis com a empresa e que, na maioria das vezes, ela não está no centro das atenções, é essencial para que não ocorram esses enganos, que acabam sendo negativos para a reputação institucional”.

O bilionário Jamie Dimon, CEO do JPMorgan Chase, disse que a pandemia do novo coronavírus é um “alerta” para o mundo construir uma sociedade mais justa e que a crise deve ser uma oportunidade para “reconstruir uma economia que crie e sustente oportunidades para mais pessoas, especialmente aquelas que foram deixadas para trás por muito tempo”.

Dimon pede que as empresas e os governos pensem e invistam no “bem comum para enfrentarem os obstáculos estruturais que inibiram o crescimento econômico inclusivo por anos”.

Muito bem dito, mas é preciso que as grandes companhias deixem a retórica de lado e se conscientizem de que um novo modelo de solidariedade deve ser criado, onde elas tenham papel de protagonistas e não coadjuvantes, onde possam utilizar seus expertises e recursos para o bem comum, com interesse apenas no bem comum e não em si, porque, no final, elas também serão recompensadas quando estiverem inseridas em um ambiente onde a maioria das pessoas possa se alimentar bem, ter saúde e dinheiro suficiente para consumir seus produtos.

P.S. Em 2006 publiquei artigo sob o título “Predadores ou Responsáveis?”, onde encerrava afirmando: “há, sim, possibilidade de empresas desenvolverem ações de responsabilidade genuína sem envolvê-las com estratégias mercadológicas. Ainda há tempo de se repensar tudo isso antes que todos se tornem predadores”.

Quatorze anos se passaram…

*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.

LEIA TAMBÉM: Predadores ou Responsáveis?

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