Este artigo é o terceiro da série que analisa como a maioria das empresas deixou de lado o interesse em apoiar projetos culturais que não estejam enquadrados em lei de incentivo. Seu objetivo é mostrar que elas têm cacife suficiente para patrocinar nossos artistas sem se escorar sob o manto da renúncia fiscal.
O primeiro artigo, denominado Cultura. Empresas. Patrocínio. É Preciso Discutir Essa Relação, lançou um desafio para que elas repensem suas estratégias e deixou uma provocação: “Caso não houvesse incentivo fiscal, qual interesse teriam pela cultura?”.
O segundo, com o título Políticas de Patrocínio Estão Cada Vez Mais Raras (o link para esses conteúdos pode ser acessado no final desse texto), revela levantamento exclusivo mostrando como a nova Política de Sustentabilidade adotada por várias empresas despreza a transparência quanto ao uso que fazem do incentivo fiscal e está levando ao paulatino desaparecimento de seus sites de qualquer referência ao envolvimento com cultura. Mostrou 41 exemplos para atestar isso.
Neste terceiro artigo vamos mostrar que a colaboração financeira direta em projetos e entidades do 3º Setor por empresas, Institutos, Fundações empresariais e independentes e de Fundo Filantrópico Particular, ultrapassou R$ 5 bilhões no ano passado, com alguma porcentagem inflada pela participação no combate ao coronavírus. Os dados indicam que esse grupo, quando quer, possui grande margem de manobra para impulsionar setores sensíveis à sociedade civil como saúde, educação, meio ambiente, proteção, assistência e desenvolvimento, especialmente no combate à fome e pobreza, entre outros, enquanto o apoio a projetos culturais está restrito ao universo das leis de incentivo.
Esses dados levam em conta números que fazem parte do Censo 2020 do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), cujo resultado abrangeu 131 respondentes, cerca de 81% da base associativa da entidade, e das aplicações feitas via incentivos fiscais federais, estaduais e municipais. Excetuando as aplicações direcionadas a iniciativas de enfrentamento aos efeitos da Covid-19, o valor total dos recursos destinados à área social foi de R$ 3 bilhões.
E o ano de 2021 foi rico em exemplos de aplicação direta, principalmente no caso do combate ao coronavírus: a Ambev anunciou direcionamento de R$ 150 milhões em ações de alto impacto social, que beneficiaram comunidades e o ecossistema, além de funcionários e donos de bares e restaurantes – e foi criada uma página específica na Internet para detalhar os investimentos. A Kroton afirmou que suas iniciativas impactaram, diretamente, mais de 2,7 milhões de pessoas e, caso fossem comercializadas, equivaleriam a mais de R$ 325 milhões. A União Química vai aplicar R$ 30 milhões em programa de sustentabilidade que prevê plantio de 1 milhão de árvores.
Já o Banco Itaú anunciou que em 2020 investiu mais de R$ 2 bilhões em projetos no Brasil e exterior por meio de suas unidades externas. Daquele montante, 95% foram destinados por meio de doações e patrocínios realizados pelo próprio Itaú Unibanco, direcionados principalmente ao Programa Todos Pela Saúde e 5% por meio de verbas incentivadas advindas de benefícios fiscais como Lei Rouanet (cultura), Lei Federal de Incentivo ao Esporte, Lei do Idoso, Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (PRONON), Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde (PRONAS) e Fundo Municipal da Criança e do Adolescente.
PONTO CHAVE – Esse é o ponto chave que a união desses três artigos pretende mostrar, reforçado pelos dois gráficos apresentados abaixo.
Neles são demonstrados que a utilização de incentivos fiscais no apoio a projetos ou instituições representou porcentagem quase irrelevante diante do volume aplicado diretamente durante 2020.
Vê-se, portanto, que dos R$ 5,3 bilhões do total de investimento no ano, os oriundos de incentivos fiscais representaram apenas 9%, ou seja, R$ 493 milhões.
E desses 9%, aplicações via lei Rouanet estão no topo da lista e proporcionalmente equivalem a 29% do total. Levando-se em conta esses dados mostrados no gráfico, o valor direcionado para esse item teria sido de R$ 113 milhões.
No documento do GIFE, no tópico Organizações por critério principal adotado por empresas mantenedoras para destino de recursos, é afirmado que “na decisão sobre o volume de recursos a ser destinado por empresas mantenedoras às organizações, os principais critérios continuam sendo: orçamento definido para atender às demandas de iniciativas em curso ou possibilitar a execução do planejamento da organização respondente (22%, com destaque para o aumento de 7 pontos percentuais em relação a 2018, tornando esse critério o mais frequentemente indicado); percentual de resultados econômico-financeiros das empresas mantenedoras (17%); e orçamento das organizações no ano anterior com variações frente a demandas específicas (15%). Nesse último inclui-se a informação: limites percentuais definidos pelas leis de incentivo fiscal.
Há, portanto, um teto limitador definido por leis de incentivo, e ele é levado em conta na formulação dos orçamentos pelas mantenedoras.
Sabe-se, porém, que em 2019 e 2020 a utilização anual da lei Rouanet estabilizou-se na casa do R$ 1,4 bilhão, número que envolve aplicações feitas por empresas, principalmente, e em menor proporção Institutos e Fundações.
Mesmo assim, maior parte dessa verba é endereçada a entidades do 3º Setor, que foram as mais beneficiadas durante o ano de 2020. É certo que os números podem estar contaminados pelo “lockdown” durante o período de pandemia, mas essa é uma tendência que pode se consolidar de agora em diante.
Valor Cultural fez pesquisa levando em conta somente os 100 principais patrocinadores de 2020 e chegou ao seguinte resultado sobre quem recebeu investimento naquele ano:

ESTRATÉGIA – Os valores aplicados em Associações, Institutos e Fundações que desenvolvem ações ligadas à cultura não surpreendem. O que surpreende é verificar que muitas empresas têm como estratégia a implantação de políticas de Responsabilidade Social baseada no uso de incentivos fiscais, mas há que se ressaltar a diferença entre patrocínio e doações.
Um bom exemplo pode ser encontrado no Relatório Anual da Rede D’Or, que, no tópico social, se resume a informar “que foram mantidos os projetos patrocinados por leis de incentivo, com prioridade para aqueles que representam um legado social ou educativo. Mais de 30 entidades foram beneficiadas, a maior parte em projetos de cultura”.
Já no caso de doação, por causa da epidemia, afirma que “no total, destinamos mais de R$ 220 milhões a estas ações, o que nos colocou entre as cinco maiores empresas doadoras no enfrentamento à pandemia.
“Ao somar a este montante os R$ 100 milhões doados por empresas parceiras em nossos projetos, chegamos ao total de R$ 320 milhões em iniciativas filantrópicas, sendo que 100% dos recursos foram provenientes de capital privado não-incentivado”.
Mas quando se trata de patrocínio a história é outra: “Buscando levar maior efetividade ao resultado das ações sociais, também em 2020 avaliamos, em parceria com o Instituto da Criança, a carteira dos projetos patrocinados por leis de incentivo com foco na identificação do impacto e da sustentabilidade de cada um. As atividades foram relacionadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU)”.
Se em 2020 o grupo chegou à casa dos R$ 320 milhões em doações envolvendo iniciativas filantrópicas, para apoiar projetos com conotação cultural, via lei Rouanet (e isso consta em seu Relatório Anual), foram aplicados R$ 2,6 milhões. Leis com benefício de ISS e a do Audiovisual não foram utilizadas.
Outros exemplos
Consta no Relatório Anual da EcoRodovias:
“A EcoRodovias é um importante indutor de desenvolvimento e amadurecimento das comunidades de vizinhança de suas rodovias e unidades. Em 2020 foram investidos R$ 8,6 milhões em diversos projetos sociais por meio de leis de incentivo fiscal.
“Os projetos seguiram a estratégia de patrocínios e investimento social do Grupo, priorizando ações focadas em comportamento seguro no trânsito, educação ambiental e inclusão social”.
M.Dias Branco:
“Nosso relatório foi desenvolvido pelas áreas de Sustentabilidade, Comunicação, Relações com Investidores e Contabilidade, em conjunto com os gestores das demais áreas”.
“A gestão do relacionamento com comunidades e investimento social é feita pela área de Sustentabilidade, com suporte dos Embaixadores da Sustentabilidade nas unidades industriais. Sempre que possível, privilegiamos organizações que atuam no entorno das nossas unidades.
Apoiamos projetos sociais, culturais, ambientais, esportivos, voltados à saúde e profissionalização, por meio das seguintes formas:
– Utilização de leis de incentivo estadual e federal, bem como de apoio direto a projetos nas comunidades do entorno;
– Doações semanais de alimentos e, pontualmente, de bens e equipamentos;
– Ações de voluntariado com a participação dos nossos profissionais.
Em seu balanço anual confirma a Política ao descrever o item Projetos Sociais Apoiados: “Engajamos as comunidades do entorno por meio da realização de projetos de impacto social via leis de incentivo, doação de alimentos, bens e equipamentos do patrimônio da Companhia e das ações de voluntariado corporativo”.
A empresa informa que apoiou “cerca de 159 instituições no Brasil com doações de mais de 17,3 milhões de reais em alimentos”.
Nota-se que no item Financeiro há ressalva de que é “valor faturado em doações de alimentos para as comunidades e instituições apoiadas em diversas regiões do Brasil”. O valor faturado foi de R$ 1,2 milhão, mas não há nenhum projeto coligado. Já com incentivo federal é informado o valor de R$ 2 milhões sendo R$ 1 milhão no patrocínio (a oito projetos com lei Rouanet, conforme consta no Pronac).
Mas em favor dessa empresa deve-se ressaltar a transparência que ela deu aos projetos patrocinados em diversos municípios brasileiros, o que é raro de encontrar.
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CONCLUSÃO: Muitos outros exemplos poderiam ser expostos aqui, reforçando a ideia de que existem dois universos quando se trata de investimento social privado. O do GIFE e seus associados mostra um globo composto por vultuoso pacote de doações que chegou a R$ 5,3 bilhões em 2020, cabendo ao uso de incentivos fiscais apenas 9% desse latifúndio, sendo que a cultura ficou com apenas 23% dos 9% aplicados pelos mantenedores.
Já no outro universo existe o número de R$ 1,4 bilhão patrocinado em projetos associados à cultura com uso da lei Rouanet, mas com predominância de aplicações feitas em Institutos, Fundações e Associações do 3º Setor.
Segundo o GIFE, a compreensão acerca da atuação do campo filantrópico passa pela análise dos recursos vinculados aos investimentos sociais. Os recursos privados voluntários são direcionados de forma planejada, monitorada e sistemática para causas e iniciativas de interesse público.
Já no caso da cultura a forma planejada e sistemática se resume à pergunta: “seu projeto está enquadrado em alguma lei de incentivo?”.
O que existe em comum, portanto, entre esses dois mundos, é que investimento em cultura se faz via incentivo fiscal.
Esses argumentos remetem à frase final do artigo Cultura. Empresas. Patrocínio. É Preciso Discutir Essa Relação.
“E se não houvesse incentivo fiscal? Qual Seria a Relação das Empresas Com Cultura?”.
Afinal, o benefício tributário será um limitador do patrocínio a projetos culturais?
Já que as empresas só estão se interessando em utilizar a renúncia fiscal e renunciar às políticas de patrocínio (como foi mostrado no segundo artigo), se não houvesse incentivo o investimento direto aumentaria, já que não haveria mais limites definidos, ou simplesmente se deixaria de apoiar o setor?
Outra pergunta, de tão sensível, deixamos para abordar em artigo complementar a esse, que é:
“O que projetos de arte e entretenimento têm a ver com Responsabilidade Social?”.
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural , que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.
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