Diálogo do cotidiano
– Seu projeto atende o entorno de nossas unidades?
– Não
– Seu projeto tem conotação sociocultural?
– Não
– Beneficia a comunidade LGBT?
– Especificamente não.
– Aborda igualdade de raça ou gênero?
– Não
– Afinal, seu projeto é sobre o quê?
– É sobre arte, como existe no resto do mundo. Arte e entretenimento. É disso que se trata.
– Desculpe, mas ele está fora de nossos critérios.
O fictício diálogo acima suscita reflexão urgente. O que arte e entretenimento têm a ver com responsabilidade social? A relevância do debate emerge da constatação de que muitas empresas estão baseando suas políticas de responsabilidade social sob a proteção das leis de incentivo fiscal, como já mostramos em artigos anteriores, e limitando seus editais (quando publicam) a projetos que atendam ao entorno de suas unidades ou se alinhem à agenda ESG.
Com isso, a maioria da verba aplicada com benefícios da lei Rouanet, e de outras regionais com abatimento de ISS ou ICMS, passou a ser dirigida, preferencialmente, a projetos ou entidades que cuidam de jovens, adolescentes, crianças portadoras de câncer ou de iniciativas sociais em torno de suas unidades.
Leis de incentivo à cultura foram criadas para incentivar a arte e a cultura, não para serem usadas como estratégia de responsabilidade social. Grandes corporações já fazem vultuosas aplicações em projetos sociais e em entidades do 3º Setor, direta ou indiretamente. Por que avançar, também, no único recurso que os artistas possuem para tornar suas obras realidade? Se quiserem continuar fazendo isso, ok, mas reservem uma verba considerável para apoiar a arte e o entretenimento de forma direta, como fazem com outros setores.
Surge daí uma dicotomia interessante: as empresas, por si ou por meio de Institutos ou Fundações ligados a elas, destinam bilhões anualmente em doações a iniciativas de filantropia, sem se importar que cada centavo doado paga imposto – o ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação). O GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) informa a seus associados que o ITCMD é um tributo de competência dos Estados e do Distrito Federal, cujo fato gerador é a transmissão causa mortis de herança e a doação de quaisquer bens ou direitos. Esse imposto incide sobre a transmissão de herança e doações privadas e, atualmente, regula as doações para OSCs no Brasil.
A doação é isenta de recolhimento do Imposto de Renda, mas cada Estado tem alíquota própria do ITCMD, que pode variar de 3% a 6% sobre o valor doado, que no ano passado ultrapassou R$ 5 bilhões em ações ou a entidades sociais, conforme Censo publicado pelo próprio GIFE.
Já no caso da cultura, contando-se todas as leis vigentes no País, o volume de aplicação mal ultrapassa R$ 2 bilhões, sendo, como já mostrado, na maioria direcionado para ações de responsabilidade social.
Resumo: sem os entraves da renúncia fiscal, e com obrigação de pagar imposto, são aplicados em iniciativas filantrópicas de R$ 4 a R$ 5 bilhões por ano.
Já para a cultura, isenta de Imposto de Renda, pois quase ninguém aceita patrocinar projeto sem ser pelo Art. 18 da lei Rouanet, aquele que oferece 100% de abatimento do IR do volume aplicado, ou com pequenos recolhimentos quando se tratar de iniciativa regional, o valor de aplicação é muito menor. E no bolo maior da “cultura” estão as iniciativas de “responsabilidade social”.
O que resta, então, para shows, peças de teatro, exposições, filmes de curta-metragem? Resta as grandes corporações como a Vale, o Bradesco, o Itaú, que são grandes patrocinadores da cultura brasileira com incentivo fiscal – se for tirado incentivo, o que serão?
DEU RUIM? – Vale, por exemplo, foi a maior patrocinadora em 2020, com R$ 120 milhões aplicados em 124 projetos envolvendo Dança, Teatro, Patrimônio, Exposição, Difusão de Acervo Audiovisual, Eventos Literários, Música Erudita, Música Instrumental, sendo R$ 32 milhões direcionados para diversos planos anuais envolvendo museus, principalmente os seus.
Deu ruim? Não, afinal, até 2018, ela não aplicava nada até acontecer o desastre em Brumadinho. No ano seguinte, tudo mudou e ela passou a ser a mantenedora líder no apoio a centenas de projetos, posição que muitos anos foi ocupada pela Petrobras. Neste momento em que outras companhias estão de costas para diversos segmentos da cultura, a Vale ressurgiu como um alento, mas sem abrir mão do incentivo fiscal.
O BNDES foi o segundo maior patrocinador, voltando ao trilho antigo de só ter olhos para restauração de patrimônio ou afins. Foi-se o tempo em que o Banco tinha um Departamento de Cultura atuante e adotado o Audiovisual como um segmento prioritário, pois via nele grande potencial de comunicação e crescimento no mercado.
Em setembro de 2017, pelo Portal de Patrocinadores, fiz uma entrevista com Luciane Gorgulho, então poderosa responsável pelo Departamento de Cultura (DECULT) do BNDES há pelo menos 10 anos.
Ao responder se a cultura sobreviveria sem a lei Rouanet, Luciana reconheceu sua importância para o mercado e argumentou que talvez ela pudesse beneficiar apenas alguns segmentos, já que outros não precisariam tanto dela para sobreviver.
Veja esse trecho da conversa, onde ela expôs sua opinião ao lado de Ana Paula Gorini, então Chefe do Departamento de Patrocínio do BNDES.
Em determinado momento da entrevista foi feita uma pergunta anunciada como “saia justa”.
– Se não houvesse incentivo fiscal, como seria a política de cultura do BNDES?
Luciane Gorgulho parou, pensou, reconheceu que a pergunta foi saia justa mesmo, e após breve período de hesitação, admitiu que a política cultural certamente seria outra e dependeria de decisões superiores. E nada levava a crer que a empresa pensaria em tirar do próprio bolso uma média superior a R$ 50 milhões por ano aplicados em projetos culturais se não pudesse utilizar lei de incentivo. Luciane reconheceu isso na época e não estava sozinha. Até hoje esse pensamento prevalece na média do pensamento dos manipuladores de patrocínio do mercado.
Hoje, pode-se perguntar: o que são R$ 50 milhões para um Banco como o BNDES? Ou para a Vale? Ou para os grupos Itaú, Bradesco e tantos outros que, como já mostrado, não se acanham quando envolve filantropia?
MARKETING? NEM ISSO – Há quase 20 anos Rachel Pellizzoni da Cruz, advogada especialista em leis de incentivo, teve um lúcido artigo publicado na revista Marketing Cultural, onde afirmava:
“Perceba-se que os impostos, para os autores (referindo-se a um livro explicando que a vinculação entre marketing cultural e incentivo fiscal tem sido divulgada como um diferencial perante outras formas de comunicação empresarial), não são direcionados para o projeto cultural, mas para o marketing cultural. O projeto deixa de ser a finalidade do patrocínio para tornar-se um meio de comunicação institucional. Esse é outro vício da associação entre marketing cultural e incentivo fiscal: o projeto cultural é o que recebe menos atenção no processo. Argumentos como esse fizeram a felicidade das consultorias de marketing cultural. A própria Lei Rouanet, ao oferecer abatimento integral para certos segmentos artísticos, estimulou essa vinculação”. (O artigo pode ser lido por aqui).
Rachel pegou na veia. Marketing Cultural não é sinônimo de incentivo fiscal. Este foi importante para alavancar um setor que andava meio abandonado em meados dos anos 90, mas o mercado acabou criando esta dependência que perdura até hoje, com um componente a mais. A comunicação não é mais necessária, a utilização desse tipo de marketing não é mais necessária – só há interesse na renúncia fiscal.
Que pena!
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.
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