Aceite Convite Para Um Diálogo Profundo Sobre ESG

Eduardo Martins*

Em complemento à pesquisa sugerida pela Percepta Marketing e Comportamento, e realizada pela Somatório, denominada A Reputação das Empresas e a (ainda) Pouca Maturidade da Agenda ESG, abordada em outro post de Valor Cultural, convidamos para conversar um dos consultores da Percepta, cujo currículo, detalhado no final desse texto, avaliza sua autoridade para debater os vários temas tratados aqui.

Vivemos um momento em que os pilares de uma agenda que envolve meio ambiente, questões sociais e sua própria governança, estão se tornando cruciais para garantir a sobrevivência de uma empresa, especialmente se for grande.

Boa parte do caminho já foi percorrido – há vários exemplos de que a consciência da importância da agenda ESG prevalece em muitas delas, embora, também em muitas delas, a execução das intenções ainda esteja no meio termo.

Não deveria. Aliás, pensando bem, essas questões basilares da sustentabilidade como defender meio ambiente, causas sociais ou prezar por sua própria governança, nem deveriam fazer parte de agenda nenhuma, pois deveriam estar incrustradas no DNA de qualquer companhia desde o momento da criação de sua Razão Social.

Mas não é assim. A evolução humana, assim como a consciência empresarial, só avança por meio de processos – muito do que é importante no Século XXI não tinha o mesmo peso no Século XX e anteriores.

A entrevista que vocês irão ler agora trata de realidades, atuais e futuras. Por que executivos estão encontrando dificuldade em transformar intenções em práticas efetivas? Por que meio ambiente está sendo priorizado, quando vivemos uma gigantesca emergência social? Será que a defesa de causas não seria mais importante do que somente o atendimento às comunidades do entorno? Por que as empresas esquecem a transparência quando utilizam leis de incentivo? Como estaremos daqui a 10 anos?

Procurei tratar esse diálogo por telefone com Victor Olszenski mais como uma conversa do que uma entrevista, que durou uma hora. As referências a dificuldades e comportamento das empresas foram abordadas de forma genérica, para ilustrar situações, porém sabemos que muitas já adotam posicionamentos mais saudáveis e isso vem crescendo ultimamente.

O trecho abaixo foi editado, embora a maior parte tenha sido preservada.

Espero, sinceramente, que os temas abordados aqui possam contribuir para o aprimoramento das consciências coletivas, pessoais e profissionais, porque esse é o nosso propósito.

Boa leitura!

EDUARDO MARTINS – A agenda ESG vai trazer muitos benefícios para a sociedade, não há dúvida disso. É inevitável. Mas o estudo de vocês veio a calhar porque somos bombardeados diariamente por empresas alardeando engajamento nos princípios da agenda, porém tenho escrito vários artigos pondo em dúvida este amor pela nova ordem, pelo menos por grande parte. Nosso foco principal é o “S” dessa sigla em função do nicho do nosso mercado e tenho visto que o “S” da agenda é jogado sempre para o final dos relatórios de sustentabilidade.

Estava conversando com um executivo de empresa conhecido sobre esse assunto, pois o grande destaque dela é o meio ambiente, como quase todas, aí perguntei: qual é a prioridade da empresa?

Porque prioridade só pode ser uma coisa, não existe duas prioridades, várias prioridades; como o nome indica, é a preferência principal. O restante é de secundário pra baixo.

Perguntei:

– Qual é a prioridade da empresa? É gente ou é árvore?

Uma coisa não elimina a outra evidentemente, elas podem conviver bem, mas estamos falando de prioridade. Aí, ele travou. Sentiu na hora o peso da pergunta.

Essa é uma questão que gostaria de levar primeiro. As empresas estão de novo surfando na onda da mídia e a bola da vez é o meio ambiente.

Não deveria ser o social primeiro, dado o momento crucial que estamos vivendo? O que você acha?

VICTOR OLSZENSKI – Eu acho que sim. Acho que devemos juntar as duas coisas e especialmente priorizar o ser humano. Afinal de contas as árvores existem e a gente tem que criar uma convivência e uma coexistência de dupla interação. Para o ser humano o meio ambiente é fundamental, por que não adianta a gente ter alimento, mas com que qualidade de alimento? Oxigênio com que qualidade? Por outro lado, eu acho que nós invertemos a ordem em algumas situações. Parece que é mais atraente falar de plantar árvores do que cuidar de gente que tem pouco recurso ou que não tem nenhum recurso. Hoje os jornais trazem aí um mês desta catástrofe ambiental de Petrópolis e a mídia toda está falando disso e uma das coisas que são fundamentais neste processo é que nós perdemos dezenas de vidas, crianças, bebês, mães e por quê? Porque havia uma má relação entre estes dois polos.

Então me parece que, de fato, aparentemente, é menos crítico falar de plantar arvores, talvez não seja um assunto tão urgente do que a gente olhar o empobrecimento das cidades.

A gente tem defendido aqui, só pra concluir, que um dos pontos fundamentais quando a gente olha a agenda ESG, é a questão do seu entorno, aonde a minha empresa, a minha fábrica está instalada, o que eu posso fazer no meu entorno direto? Não adianta ficar, claro que adianta, é uma preocupação, mas o nosso foco não é o foco do que está acontecendo na Europa Oriental, nosso foco é o que está acontecendo do nosso lado, batendo na porta ou batendo no vidro do carro. Então, sem dúvida nenhuma, é preciso que a gente se preocupe com este aspecto, talvez mais do que simplesmente com a agenda ambiental.

EM – Você não acha, a gente discute muito isto de atender o entorno, que não seria mais interessante se as empresas adotassem uma causa, causas importantes?

Você falou de pessoas na rua e é verdade, isto está aumentando cada vez mais, a emergência social no Brasil está aumentando cada vez mais. Não seria interessante que ela, saneamento básico, que ela abraçasse uma causa assim, eu sei que depende do Estado, mas tem muita coisa que as empresas podem fazer. Você acha que não seria um caminho mais interessante para elas?

VO – O exemplo que você deu, de saneamento básico, é muito interessante. Vivemos uma situação muito grave no País com relação a isso. Metade da população brasileira não tem acesso a saneamento básico. Mais recentemente tivemos a aprovação, no Congresso, do Marco Legal do Saneamento, que de alguma maneira incentiva a empresa a investir nessa área. A área de águas no Brasil tem, nós temos no Brasil, de forma geral, perdas muito grandes; você capta água, limpa, torna ela potável, depois, até chegar na nossa torneira, há uma perda estimada de 20 a 30%, dependendo da cidade, dependendo da idade das tubulações de distribuição.

Quem quer investir na causa do saneamento básico? Há muitas formas.

No fundo, no fundo, grandes causas são importantes, relevantes, mas talvez também tenhamos de investir em educação. Para além do modismo, para além de algumas causas que às vezes são até muito obvias, que algumas empresas adotam, é importante que a gente pense na sustentabilidade econômica e financeira de uma empresa, imaginando o seguinte: quem vai ser o meu consumidor daqui a 10 anos? onde ele estaria instalado como empresa daqui a 10 anos? Como serão essas condições? Que tipo de suporte eu preciso estabelecer hoje, do ponto de vista educacional, do ponto de vista do desenvolvimento humano, para que nós possamos chegar daqui a 10 anos com uma agenda fortalecida?

Só que, de alguma maneira, nós ainda estamos sendo motivados pela emergência e, você citou bem, nós temos uma emergência social, nós temos uma emergência climática e precisamos olhar isso de modo sistêmico. Só tapar o buraco, só correr para apagar o incêndio não vai ser suficiente porque, como estamos vendo, cada vez mais emergências têm ocorrido. Muita gente tem falado “nunca choveu tanto como agora”, sim, sistematicamente ano a ano, porém, por mais que se invista estas obras não dão resultado porque não há uma visão sistêmica, porque desta maneira, e acho, concordo com você que as causas são importantes, se não tivermos uma visão global sistêmica, um eixo só talvez não resolva nossa vida.

EM – Essa questão é muito grave porque eu mesmo até escrevi, dois anos atrás, um artigo sobre a “Solidariedade S/A”, aquele quadro da Globo. Eu trabalho há muitos anos com comunicação e a gente sabe como funciona a cabeça desse pessoal – eu olhava para aquilo e falava pra minha mulher, “eu tô vendo o dono da empresa chegar para o pessoal de marketing e perguntar “o que vamos fazer para aparecer nesse quadro?”. E foi isto mesmo, tanto que quando o quadro desapareceu, o nível de doação despencou. Então esta forma emergencial que você cita mostra que não há um engajamento genuíno.

Por isso defendo que a empresa tem que ter causa. A causa da educação é uma coisa tão gigantesca e tão óbvia, e até para as empresas também, porque se não tiver uma população com melhor educação, com melhor poder aquisitivo, ela não vai poder comprar o seu produto, ela está perdendo dinheiro, pois o maior interesse dela seria contribuir o máximo que ela pudesse com essas questões. Mas ainda prevalece o emergencial. Esse é que é o problema.

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VO – Só pra juntar ao que você acabou de falar, o princípio de você educar e investir no ser humano, para que ele tenha melhor qualidade de vida e melhor educação e, portanto, faça escolhas melhores, de produtos adequados, é um ciclo obviamente do capital e que muitos empresários acabam se esquecendo, isto é, ele também acaba se envolvendo com resultado deste mês, deste ano, se esquecendo do resultado da empresa dele daqui 5 ou 10 anos.

EM – É verdade! Isso é uma coisa que a gente precisa evoluir muito ainda.

VO – E se você me permite a questão do ESG talvez seja uma coisa interessante. A gente percebe que determinados processos são absorvidos pelo pensamento social, ou pelo pensamento empresarial, de maneira lenta.

“Processos são absorvidos pelo pensamento social”.

Acho que nós dois, que já passamos dos 35 anos, a gente viu tranquilamente a legislação do cinto de segurança, por exemplo, e a legislação antifumo em lugares fechados. Quando elas aconteceram houve uma grita da população, mas com o passar do tempo as pessoas foram se habituando, se acostumando, entendendo a necessidade deste tipo de legislação; hoje as pessoas talvez, ainda, claro, temos um fluxo, um conjunto da sociedade, uma pequena parcela que reclama para pôr o cinto de segurança, mas temos grande parcela de pessoas que reconhece que o cinto hoje é um item de segurança. Então eu imagino que a questão da ESG, neste momento, esteja passando mais ou menos por esta imposição, entre aspas, de uma eficiência em ESG.

Davos foi lá e falou do capitalismo, das partes interessadas, falou da história do capitalismo, dos stakeholders e o alinhar para esta função.

No começo do nosso material você deve ter visto lá um estudo um pouco mais antigo do IBEC falando sobre o greenwashing e, infelizmente, ainda tem muito. Tem muito empresário que está pensando efetivamente nessa linha que você comentou: “marketing, como é que eu posso sair bem neste processo, como eu posso capitalizar ou potencializar …

Por outro lado, como você bem colocou, a palavra propósito vem cada vez mais sendo substituída pela questão antiga de Missão e Valor das empresas.

Antigamente você entrava numa empresa, e eu como consultor de empresa há muitos anos, tenho visto que havia uma consultoria que entrava, fazia Missão e Valor da empresa, as pessoas colocavam em seus quadros de avisos, no verso dos crachás, nas entradas dos elevadores e áreas afins, mas isto não estava internalizado na mente, não só do funcionário como também do empresário e da diretoria. Hoje em dia, quando você fala em Propósito, esta questão muda um pouco de eixo pra dizer “qual é a razão efetiva de ser da minha empresa? O que é que eu contribuo, o que eu colaboro, como é que a sociedade se beneficia daquilo que estou fazendo? E isso inclui abraçar causas do jeito que você comenta.

Eu vejo, Eduardo, que isto é um processo; às vezes ele caminha mais lento do que a gente gostaria, mas é um processo que em alguns anos deve dar frutos.

EM – Eu não tenho dúvidas de que isso vai acontecer. Mas você tocou em dois pontos que eu acho interessante, e até iria abordar um pouco mais pra frente.

Eu tenho um amigo, Marcio Schiavo, que é consultor de várias empresas, tem uma experiencia enorme nessa área ambiental, social, enfim, ele tem uma tese, e não é uma tese, é a verdade, em que diz que a empresa já é um ser social em si porque a primeira coisa que ela precisa ter pra funcionar é Razão Social.

Então, qual é sua Razão Social? Ah, é não sei o que, não sei o que S/A, Limitada… Elas não se dão conta disso ainda, ela não tem a percepção de que ela é um ser social. Ela não existe apenas só para o lucro, isso já passou desse tempo, embora a Petrobras ainda ache que sim.

E outra questão interessante que quero abordar, e você tocou rapidamente, é … nosso negócio é muito voltado para a cultura e para o social, mas há uma ação de marketing de algumas empresas, e é de marketing mesmo, embora não admitam, que me incomoda bastante, que é beneficiar algumas Organizações Sociais por meio da compra que as pessoas fazem do seu produto.  Por exemplo: Visa Causas, cada compra que você fizer com Visa enviaremos um valor para a OSC que você escolher. E aí descobri que esse valor é um centavo. Quer dizer, você compra alguma coisa com o cartão Visa e diz eu quero mandar pra tal entidade e aí a Visa envia um centavo.

O azeite Andorinha criou um azeite especial que quem comprar vai poder escolher também uma OSC para fazer uma doação, e ela chama isto de “Azeite Social”. Quer dizer, compre que a gente ajuda.

E se ninguém comprar, a empresa não vai ajudar ninguém? Será que estas empresas estão na pindaíba a ponto de não poder usar dinheiro próprio?

Gostaria que você falasse sobre estas abordagens que eu acho que as pessoas não se dão conta destas coisas, muito menos a empresa né?!

VO – Eduardo, acho que este é um ponto bem interessante e, de novo, faz parte um pouco desta evolução. Nós vamos ver e vamos encontrar empresas que não têm nenhuma vocação pra dar algum tipo de retorno à sociedade. Infelizmente ainda existe. Vamos ver muitos empresários que ainda olham e veem como missão fundamental da empresa gerar lucro para seus acionistas. Isto sem dúvida ainda existe.

Na outra ponta a gente encontra empresas que têm consciência bastante interessante, sem a visão da venda como você citou, têm também investimentos bastante relevantes para este processo e aí temos grandes empresas com Institutos, Fundações. Eu, por exemplo, durante muitos anos fui executivo da Telefônica e tínhamos lá uma Fundação cujo presidente, à época, era uma pessoa muito conhecida no meio social ambiental que era o Sergio Mindlin, e tínhamos visão, ele tinha uma visão muito interessante e ele dizia o seguinte: “se eu tiver que colocar 1 centavo em propaganda, eu prefiro colocar isto na finalidade específica da Fundação”.

Então você tem na indústria e na iniciativa privada este tipo de movimento, né? E você tem este meio de caminho, que você cita, tem estas empresas que estão migrando do universo exclusivamente do lucro, digamos assim, de uma visão empresarial do Século XX, para uma evolução maior, mas que ainda tem um pouco do pensamento do Século XX e entendem que existe uma pressão da sociedade no sentido de mudar isso.

Aqui acho que do ponto de vista da agenda ESG e da agenda da proposito e da agenda de reputação das empresas elas estão mais rápidas. Eu concordo plenamente com a fala do Marcio de que a empresa tem uma razão social e isto não é só uma questão legal. Acho esta visão perfeita. Porque ela está inserida num complexo, está inserida em um processo em que cada vez mais, pra que eu alcance determinadas certificações, a gente comentou isso meio en passant no processo, ela tem que olhar seu fornecedor e verificar como ele está fazendo a coisa. Não basta só que a empresa cuide de si mesma, ou faça investimentos em si mesma, mas para que obtenha as certificações ela tem que ir para trás, ela tem que olhar a cadeia como um todo para garantir que isso aconteça.

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EM – Isto! Mas eu acho que a pesquisa de vocês já deu uma indicação, alguma razão dessa dificuldade das empresas. Quando mostra que ¼ das empresas abordadas não tem executivos, profissionais designados para a gestão ESG, e mesmo assim, 7 em cada 10 executivos que vocês ouviram, avaliaram que a priorização da agenda teve alto impacto na sua empresa. Não é estranho? Elas acreditam que a agenda teve um alto impacto, mas ¼ não tem executivo designado para esta questão. Acho que isto é um gargalo bem interessante de avaliar, não é?

VO – Sem dúvida! E quando você soma isto com outros dados, estas coisas são combinadas. E quando você olha as prioridades declaradas da agenda ESG, que no caso da área ambiental são 85%, e o grau de maturidade que nós estimamos, da mesma área ambiental, é o menor dos três. Então pera aí, eu não tenho gente preparada, eu digo que o ambiental é o mais importante, mas na prática não estou conseguindo levar isso à frente.

Porque no fundo, Eduardo, eu imagino o seguinte:  é muito melhor que uma empresa,  e aqui abrindo um parêntese, e concordo com você que a questão é social e a questão ambiental é decorrência, ela está bastante implicada nesta discussão, mas aparentemente a emergência social é mais emergente, se é que eu posso ser pleonástico nesse nível.

No entanto, no meu ponto de vista, é que se uma empresa se preocupar em plantar árvores a gente já está no lucro.

Gráfico de respondentes extraído da pesquisa

Então o que nós notamos, quando se dá essa informação de que ¼ das empresas que está na pesquisa não tem uma área específica, não tem gente que cuide disto, e você vê que são respondentes que são do marketing, que são respondentes que são de áreas alheias a esta preocupação, você se dá conta de que este é um movimento que está chegando e para o qual as empresas não estão estruturadas, ou pelo menos este ¼ não está estruturado, e ao mesmo tempo a gente vai perceber que cresce um volume  de áreas que tem uma área de ESG. A gente começa a ver um número maior de respondentes mais especializados e isso já começa a fazer sentido.

EM – Eu queria abordar uma outra questão que está muito ligada à gente, que é a seguinte: – eu tenho batido muito sobre o fato de que, mais do que curioso, é impressionante. Você entra no site do GIFE e vê que as empresas fizeram no ano passado mais de 5 bilhões em doações para entidades sem fins lucrativos. É verdade que este número está um pouco inflado por causa da covid; em geral é R$ 3,5 bilhões, por aí. Mas quando se trata de apoiar a cultura, elas usam lei de incentivo e a questão que levanto, e já fiz também vários artigos sobre isso, é que elas não mostram quanto estão usando, quem elas estão beneficiando.

Nesta questão a transparência é zero e a transparência, que é um dos aspectos básicos da Governança, não serve quando se fala da lei de incentivo à cultura. Só com lei Rouanet no ano passado R$ 1,9 bilhão foi aplicado em projetos culturais.

Você entra no site das empresas e raramente encontra alguma referência. Você já tinha percebido isto?

VO – A gente não tem se debruçado sobre a questão específica do foco em cultura. Particularmente eu lidei um pouco com isso na minha vida de executivo e sempre me vem uma questão muito próxima da questão cultural.

A questão cultural sempre é polemica, e por que é polemica? A cultura é vanguarda, ela cria um espaço que você não esperava e muitas vezes o artista plástico, o compositor, o escritor, cria um espaço de questionamento, de dúvida no público que precisa ser gerado para que esta população cresça, se for repetir apenas reproduzir e repetir clássicos, a gente não vai dar passos efetivos para a frente.  Então quando você olha a cultura, e houve uma politização da questão cultural, especialmente por volta da eleição passada, a gente está sempre olhando este lado mais polêmico e está esquecendo qual é este papel, que é o papel cultural.

Mesmo quando nós tínhamos os grandes festivais, você lembra de algumas marcas de tabaco que fizeram história na área da dança, na área do jazz, então você começava a pensar por que uma coisa está ligada a outra? Porque de alguma maneira eu ganhava esse incentivo, eu não tenho uma fórmula de fazer isso, mas me parece que você toca num ponto fundamental neste processo que é a transparência sobre o tipo de investimento que estou fazendo. Como é que eu aporto este processo, e mesmo a definição do que é investimento em cultura e o que é por marketing e nós sempre vamos olhar sob o ponto de vista empresarial o investimento em cultura, de alguma forma é associado com algum tipo de exploração de marca. Então, quanto mais exclusiva for a Mostra, quanto mais hermética for a manifestação artística, menos ela vai se servir de alavanca mercadológica.

Vamos sempre ter esta dicotomia e de alguma maneira nós vamos ter que trabalhar e criar mecanismos para fazer com que o artista seja valorizado e valorizado de fato, ao mesmo tempo em que possamos reconhecer, do ponto de vista empresarial, essa linha de investir em cultura não necessariamente explorando a cultura como um elemento de alavanca de marketing.

EM – Eu estranho porque bato muito nesta questão da transparência. Ela é o único item em que a transparência não funciona.  Fizemos um levantamento dos 200 maiores apoiadores, empresas apoiadoras no ano passado, e 70% delas enviaram verba para organizações sem fins lucrativos, o que é muito bom para estas entidades que desenvolvem vários projetos. A grande questão que eu coloco, e acho que estão equivocadas por não dar transparência para isso, é que elas poderiam abrir páginas em seus sites… tem empresas, por exemplo, a Vale investiu 300 milhões no ano passado, você tem empresas como o Atacadão que são 20, 30 milhões por ano.

Elas poderiam falar “olha o que estamos fazendo com o dinheiro da Lei de Incentivo, até para esta questão politizada que você citou. Elas ganhariam muito mais interesse por parte dos consumidores quando elas mostrassem “olha, nós gastamos 20 milhões no ano passado com a Lei de Incentivo e olhem o que fizemos, e ali coloca tudo que fez. Quem vai achar ruim, se elas estão beneficiando diversas organizações, artistas do interior…? Ninguém vai achar ruim, mas elas não conseguem enxergar isto! Mas independente dessa estratégia, que eu acho equivocada, o que me incomoda é que quando chega neste ponto, a transparência some. E aí entra esta questão da Governança que precisa ser discutida. Por quê?

VO – Voltando para questão do ESG, especialmente do G da Governança, o nosso olhar do G dentro da linha que você fala da transparência, do compliance, dos códigos de conduta, isto é fundamental. Não resta a menor dúvida de que os espaços de investimentos em qualquer área, inclusive a cultura, devam ser claramente explicitados, notadamente quando a empresa tem este discurso e eventualmente às vezes é sua obrigação. Mas se há, tem obrigação legal de manter seus livros abertos, até para que possibilite aporte de investimento de acionistas, distribuição de dividendos etc.

No entanto me parece que aqui, assim como a gente discutiu anteriormente uma aproximação do E do S, aqui também estamos discutindo a aproximação do G e do S.

A questão de você ter como transparência de tomar determinadas decisões a respeito de incentivar cultura em larga escala, ainda que sejam, infelizmente, ligadas apenas a leis de incentivo, é importante que as pessoas entendam que isso também faz parte do processo.

E infelizmente nós temos um mainstream que é meio obvio, um mainstream ligado a nomes que têm mais projeção porque têm maior presença televisiva, esta pessoa tende a ter mais bilheteria num determinado teatro, essa pessoa tende a ter mais bilheteria no cinema etc. São questões que temos que pensar cultura de maneira estratégica.

Eu efetivamente não tenho nenhum caminho para resolver isto, para resolver este dilema, reconheço que é dilema e concordo 100% com você que o primeiro passo efetivo é a transparência e deixar isto aberto em público.

EM – Incomoda. A mim particularmente incomoda. Porque as empresas estão dizendo “eu uso, mas não conto”, e não usa pouco não. E além do que elas só usam isso, o que mais me incomoda nisto tudo, elas só apoiam se tiver lei de incentivo. Se você chegar com um projeto cultural em qualquer empresa e disser que precisa de apoio, a primeira coisa que irão perguntar é se tem lei de incentivo. Se não tiver, tchau.

VO – E alguns casos irão perguntar se é artigo 26 ou artigo 18.

EM – Se for artigo 26 já complica. Se não tiver é impossível. A gente entra naquela questão do azeite, do Visa Causas. Se você comprar meu produto eu vou doar.

Se você tiver lei de incentivo eu apoio; caramba, e o dinheiro da própria empresa? Por que a cultura tem que ser apoiada com a lei de incentivo? Por que a empresa não pode criar um programa, não pode criar um sistema? A cultura não é uma parte importante da sociedade?

VO – Tenho visto algumas inciativas, notadamente feitas pela CUFA (Central Única das Favelas), do RJ, de incentivos a movimentos artísticos dentro de comunidades.

Vejo isto de fora, vejo pela TV e não sei até que ponto a informação está completa e correta, mas, olhando de fora, parece uma iniciativa muito interessante e não sei até que ponto eles têm obtido incentivo, vivem de incentivo ou se têm também causa, porque nesse nível eu acho que aí há uma junção, digamos assim, uma convergência do interesse social e do interesse cultural. Na medida em que eu ensino, faço uma oficina de música para crianças da comunidade, isto ajuda no social, mas desenvolve cultura.

Por exemplo, na medida em que eu possa querer que uma criança se realize tocando bem um instrumento, e não que seja uma subcelebridade, a coisa começa a melhorar. Que possa ser um bom atleta, um bom judoca, um capoeirista, um bom atleta, não necessariamente um Neymar, porque aí a gente sempre vai estar criando um viés, não do processo cultural em si, da autorealização do ser humano, mas vamos estar buscando uma fama efêmera, pouco significativa.

EM – O que você falou vem ao encontro do que penso e disse agora há pouco. A CUFA, por exemplo, tem uma verba grande recebida por empresas, tudo com lei de incentivo. Como falei no começo, 70% dos grandes patrocinadores estão direcionando verba para este tipo de projeto. Então a empresa que apoia a CUFA, não é interessante para ela contar pra todo mundo o que está fazendo com a lei de incentivo?

VO – Creio que se ela tem um pouco dessa mão de propagar este tipo de informação, etc., a gente cria um círculo virtuoso em que uma empresa olha, vê investimentos de outras, e isto funciona até como ação de benchmarketing, as pessoas começam a olhar isso e melhorar sua própria reputação. Investir na CUFA não é somente investimento na arte em si, mas no resgate do meio social.

Acho que isso vai muito ao encontro tanto do G como do S; a gente consegue somar isso e estimular isso. Seria bom, num segundo momento, fazer um trabalho junto às empresas, falando “divulga”, “divulga”. Acho que você tem toda razão!

De nossa parte, aqui na Percepta, na medida em que a gente fale com outras empresas dessas, eu vou abordar um pouco esse ponto que você levanta da transparência destes tipos de investimentos seja ele social, seja ele cultural. Acho uma boa ideia, um bom toque.

EM – Mas Victor, para encerrar essa conversa, o que você acha que vai acontecer, como vai evoluir isso, o que elas precisarão fazer para que daqui a 10 anos a gente tenha um quadro melhor dentro dessa Agenda? O que você projeta?

VO – Nós temos algumas possibilidades interessantes e temos algumas possibilidades catastróficas. O exercício de planejar o futuro é um exercício complexo e que dependem de condições macro ambientais que nem sempre a gente está.

Ninguém previa em 2019, novembro de 2019 se ouvia falar alguma coisa de uma gripe na China e ninguém sabia que a gente ia ficar dois anos sob um efeito devastador da Covid. Pode ser que aconteçam outras coisas dessas, pode ser que o conflito do leste europeu caminhe para uma guerra talvez mundial, o que seria desastroso para todos nós.

Mantidas algumas condições, e mesmo nos cenários mais adversos, eu vejo uma tendência de as empresas irem buscando mais e mais esta visão ESG.

Esta é uma tendência que deve acontecer e que vem junto com esta visão de ESG. Repare, o que deu o grande impulso ao conceito de ESG? Foi Davos, não é?  Foi o Fórum Econômico Mundial que em algum momento disse: “olha, estamos começando a entender de que temos que começar a falar do capitalismo de partes interessadas”.

Então acho que estes dois fatores, ainda que tenhamos um conflito de médias proporções, e que sejamos pressionados pela emergência climática e pela emergência social, eu acho que estas duas emergências podem servir de catalizadoras para o crescimento desta tendência e a gente possa, finalmente, olhar o ser humano sem distinções.

Eu acho que esta é uma década que a gente vai começar a se dar conta desse processo. Não na velocidade que nós dois gostaríamos Eduardo, mas eu acho se tivermos esta conversa, se estivermos vivos em 2032, eu acho que teremos avançado bastante nesta agenda graças a esta tecnologia de um lado e graças às emergências de outro.

SOBRE VICTOR OLSZENSKI

É Mestre em Ciências da Comunicação, graduado em Publicidade e Propaganda, é Executivo de Marketing, Comunicação e Relações Institucionais com 30 anos de experiência acumulada em empresas como Telefônica/ VIVO; Pial-Legrand; Deca e Toyota além da Agência de Propaganda Z+G Grey. Desenvolve estudos nas áreas de Marketing Estratégico; Marcas e Comunicação Corporativa; Relações Governamentais e Institucionais. É palestrante e professor em vários Programas de MBA em Marketing, Branding e Comunicação, entre eles Franklin Covey Education, ESPM, Anhembi-Morumbi, FMU, Faculdades Rio Branco, UNIP e UNITAU. É coautor do Livro: Um Profissional para 2020 – Editora B4.

*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos ou ações, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.

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