É preciso ter coragem para admitir essa realidade. O desvirtuamento da relação entre empresas e os fazedores de cultura chegou a um ponto em que esse mundo de faz-de-conta não se sustenta mais. As leis de incentivo geraram um paradoxo onde se defronta que nunca se aplicou tanto em projetos culturais e, ao mesmo tempo, mostra que os patrocinadores perderam a percepção sensorial de que a cultura merece ser mais do que um mero depositório da renúncia fiscal que lhes é oferecida.
Esse ciclo vicioso precisa ser interrompido ou, pelo menos, discutido. Pelas empresas, que necessitam de uma autoanálise para despertar o discernimento de que o incentivo às artes e à cultura é um dos pilares da responsabilidade social que deve ser exercida para o bem da sociedade. E que não é possível fazer isso somente com uso do dinheiro dos outros.
Aos produtores, chegou o momento de se rebelar contra a cultura instalada de que só se consegue realizar projeto relevante para a sociedade se ele estiver enquadrado em alguma lei de incentivo. No caso da lei Rouanet, a realidade é ainda mais gritante: quem já não ouviu a pergunta se o projeto dele está aprovado pelo Art. 18, aquele que dá 100% de abatimento no IR devido pela empresa? Se estiver no Art. 26, o que oferece desconto parcial, nem pensar. Se não estiver em algum desses, chance beira ao zero.
Como é possível um mercado que representa mais de 2,5% do PIB nacional, e que estudo da Fundação Getúlio Vargas já comprovou que de cada R$ 1 aplicado na cultura gera retorno direto de 59%, sem considerar os ganhos intangíveis, obrigue seus agentes a perambular com pires na mão para obter financiamento a projetos, sejam grandes ou pequenos, de cuja origem, ironicamente, vem de todos nós?
Esse é o quadro quixotesco que se apresenta: produtores implorando por patrocínio a quem está gerindo verba que, no fundo, bem lá nos fundilhos de sua consciência, sabe que patrocínio incentivado nada mais é que o uso de nosso próprio dinheiro.

A incúria chegou a tal ponto que agências se apresentam como intermediadoras das escolhas de empresas que até a isso renunciam – não querem ter trabalho. No lugar de uma equipe especializada, que pudesse traçar estratégias de patrocínio que favorecessem sua marca, criando a percepção de que ela é uma incentivadora das artes e se importa com isso, preferiram terceirizar o serviço apenas para uso do incentivo fiscal.
E algumas o fazem mesmo sabendo, ou ignoram, que essa intermediação realizada por agências que cobram do proponente os 10% de captação, que quase todas as leis permitem como remuneração pelo trabalho, já foi apontada como ilegal.
A Associação Brasileira dos Captadores de Recursos denunciou que, “de acordo com o previsto na Lei de Incentivo à Cultura, além de antiética, essa prática configura-se como vantagem financeira indevida e é, portanto, ilegal”. Por uma razão muito simples: empresas que prestam serviço aos patrocinadores devem ser remuneradas por eles, e não com recursos incentivados. E nenhuma lei é tão clara como a Rouanet (lei 8.313/91) sobre esse aspecto, conforme o Artigo 23:
“Constitui infração a esta Lei o recebimento, pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou material em decorrência do patrocínio que efetuar”.
Portanto, nem remunerar as agências elas querem, pelo menos as que praticam essa ilegalidade. E não são poucas, e não são irrelevantes – são grandes.
Essa distorção as leis provocaram. Se é permitido abater o valor aplicado do Imposto de Renda devido, por que devo usar o dinheiro da empresa?
Michel Freller, diretor da Criando Consultoria e vice-presidente da ABCR, que é especialista em ESG e nos ODS, há décadas fazendo pontes entre empresas e organizações sem fins lucrativos, é da opinião de que as empresas, com raras exceções, não têm o menor interesse em utilizar cultura como valorização da marca.
E isso está se comprovando ultimamente.
FENÔMENO NOVO – Para corroborar essa opinião de Michel, há um novo fenômeno cada vez mais evidente. Muitas companhias, maioria até, nem se importam mais em informar que estão apoiando projetos culturais. Algumas publicam editais, onde o enquadramento no Art. 18 da lei é obrigatório, e divulgam os vencedores, quando muito. Não é a praxe – a praxe é usar o incentivo e pronto.
E cada vez mais estão sumindo das páginas as Políticas de Patrocínio, os campos para encaminhamento de propostas, os critérios que anunciavam os aspectos relevantes que um projeto deveria ter.
A opinião de Michel Freller está casada com a realidade.
A pergunta chave para se fazer a qualquer empresa é:
– E se não houvesse incentivo fiscal? Qual seria seu envolvimento com a cultura?
A pergunta é relevante porque aquele que tiver paciência para ler os Relatórios Anuais ou de Sustentabilidade publicados ultimamente, vai notar que a referência aos projetos culturais apoiados, e o uso das leis, é tímida ou nula, ao passo que meio ambiente, mais, e governança, menos, recebem tratamento com algum destaque. Social, em muitos casos, merece apenas algumas linhas ou só aparece nas páginas finais.
E esses relatórios agora estão em consonância com a nova agenda ESG, sigla que indica o comprometimento da empresa nas áreas de meio ambiente, social e governança. Em geral, são documentos com mais de 100 páginas, onde se nota o esforço para convencer acionistas de que ela está alinhada aos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (os ODS) e às melhores práticas da Responsabilidade Social.

E entre essas “melhores práticas” deveria estar a transparência de informar à sociedade o que estão fazendo com o dinheiro público. A boa governança exige que tudo seja transparente, principalmente quando se usa renúncia fiscal, que nada mais é do que a transferência para a empresa de parte do imposto devido (e que o povo paga) para que ela use em projetos culturais ou sociais.
Levantamento de Valor Cultural, resultante de visita nos sites de dezenas de empresas, comprova que essa transparência está cada vez mais distante. Ele será demonstrado aqui, na próxima semana.
E aconselho fortemente para lerem a entrevista de Marcio Schiavo, neste mesmo site, especialmente a parte em que ele aborda a deficiência dos gestores de empresas. (As outras partes também é importante ler).
Deve-se acabar com as leis? Ou recusar-se a utilizá-las?
Não. A lei Aldir Blanc abriu um caminho novo e diferente e foi o que salvou a pele de muitos produtores, especialmente os pequenos.
Instituições de assistência social como TUCCA, Dorina Nowill e centenas de outras dificilmente subsistiriam sem a lei Rouanet, pelo menos para exercer suas funções com algum grau de eficiência.
O que está se propondo aqui é uma discussão necessária. É preciso coragem para instigar empresas a terem um comprometimento genuíno com a cultura. Afinal, e isso também iremos mostrar proximamente, várias aplicam volume de dinheiro maior em ações não incentivadas do que em incentivadas.
É compreensível que a primeira reação a esse artigo seja de discordância porque, afinal, são anos e anos em que os fazedores de cultura se encostaram prazerosamente no barranco do universo incentivado.
Mas agora, onde a pandemia dizimou milhares de empregos, o governo federal colocou um ex-capitão da PM para definir destino de projetos, os orçamentos públicos para o setor seguem em sua linha descendente e a transparência no uso da renúncia fiscal está cada vez mais translúcida, chegou o momento de debater e cobrar.
Que interesse, afinal, as empresas têm pela cultura brasileira?
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.
Crédito das imagens:
Estátua: Cotonbro
Bazar: Maurício Mascaro
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