Esta é a segunda de uma Série de quatro matérias abordando a relação entre agências captadoras de recursos para projetos culturais e empresas patrocinadoras. Sua origem está nas normas legais inseridas pelo Ministério da Cultura alertando para possíveis vantagens financeiras indevidas obtidas por patrocinadores. Série será composta por entrevista com representante da ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos), do Ministério da Cultura, proponentes e captadores de recursos avulsos e, por último, agências captadoras e empresas.
Ele estava se sentindo aposentado, circulando de moto pelas ruas de Fortaleza, afastado de quase tudo o que se relacionava ao seu trabalho anterior e, de quem recebia pedido de ajuda, aconselhava a não usar seu nome porque seria pior: “eles acham que sou comunista…”, disse rindo.
Henilton Menezes voltou ao seu leito natural, agora assentado na dedetizada cadeira de Secretário da Economia Criativa e Fomento Cultural de um Ministério renascido após viver quatro anos de desterro, transformado em uma Secretaria Nacional jogada de um lado a outro como apêndice de corpos com os quais nada tinha a ver.
E o Secretário retornou sentindo, por vezes, a sensação de ser um popstar.
“A gente fez uma sessão no MASP e a sala estava lotada de pessoas e tive que fazer 2 seções porque uma só não coube e amanhã estou indo para o Rio fazer a mesma coisa com os proponentes. A gente faz reunião assim, dizendo meio que, poxa, chegamos, somos parceiros, estamos do mesmo lado, vamos trabalhar para desenvolver a cultura brasileira, e é engraçado isso porque as pessoas se emocionam, porque tão podendo falar. E você vira praticamente um popstar porque todo mundo quer fotografar, quer tirar uma foto com você, dizendo “faz quatro anos que eu não converso com ninguém”, e agora a gente está criando essa possibilidade”.
Ele ouviu relatos de pessoas andando armadas na gestão anterior pelos corredores e a menção feita à cadeira dedetizada é verdadeira, e ele contou assim:
“Rapaz, teve uma lavagem aqui. A ministra Margareth Menezes fez uma lavagem aqui, foi logo depois que saiu o decreto de validade (recriação do Ministério), dia 23 de janeiro. Teve um movimento aqui dos funcionários fazendo uma lavagem, uma lavagem com sal grosso. Aqui na minha sala estava aquele capitão da polícia, eu fiquei com medo, mandei dedetizar tudo” disse, rindo, mas lembra que a hora agora é de seguir em frente.
“Uma coisa que já fiz foi um diagnóstico de como recebi essa Secretaria e claramente tracei uma linha – daqui pra frente é comigo; daqui pra trás vocês vão atrás pra saber com quem é. Passei para os órgãos de controle, a gente encontrou uma série de irregularidades, potenciais irregularidades, e não cabe a nós fazer nenhum julgamento. Fiz apenas um relatório do que eu encontrei. Eles que vão ter que responder”.
TAPANDO BRECHAS – Mas o motivo da conversa com Henilton foi ouvir um representante do Ministério da Cultura sobre dúvidas que ainda possam existir sobre o que é ou não vantagem financeira indevida obtida por patrocinadores, como parte da série de quatro matérias produzidas por Valor Cultural/Marketing Cultural sobre o assunto. Semana passada foi ouvida a ABCR – Associação Brasileira de Captadores de Recursos.
Origem foi a introdução de vários artigos em Decreto assinado em março, e na Instrução Normativa nº 1, de abril, que apontaram para um recado semelhante:
Decreto 11.453, de 23/03/2023, Artigo 55, § único:
“É vedado o uso de rubricas de captação de recursos para pagamento por serviços de consultoria, assessoria técnica ou avaliação de projetos prestados diretamente aos patrocinadores”.
E na Instrução Normativa nº 1, de 10/04/2023.
Art. 10, §3º:
“A remuneração pela captação de recursos é exclusiva para prestação de serviço diretamente ao proponente, sendo vedada a remuneração de serviços prestados diretamente ao incentivador”.
Art. 21. É vedada a realização de despesas:
Inciso VI – Para pagamento por serviços de consultoria, assessoria técnica ou avaliação de projetos prestados diretamente aos patrocinadores.
O Artigo 23 da lei Rouanet, publicada em 1991, já definia:
“Constitui infração a esta Lei o recebimento, pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou material em decorrência do patrocínio que efetuar”.
Henilton considerou essas medidas necessárias porque, de certa forma, “deu uma mexida em algumas pessoas que estavam trabalhando de forma nebulosa. Você sabe que tem malandro em todo canto, e de repente, um pessoal achou uma brecha, mas não pode, não pode distorcer o mecanismo”.
A brecha a que o Secretário se refere foi o “modus operandi” de algumas agências que captam recursos para projetos de patrocinadores culturais, principalmente. Várias denúncias chegaram à ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos) e outras foram denunciadas também por proponentes.
Os diversos cenários existentes na relação entre agências captadoras x empresas patrocinadoras foram detalhados na primeira matéria dessa série, que pode ser acessada no final desse texto:
Nesta entrevista, Henilton Menezes fala em nome do Ministério da Cultura. Há reprodução em áudio de alguns trechos.
EDUARDO MARTINS – A gente tem ouvido muita gente em referência à atuação dessas agências que intermediam a captação de projetos junto a patrocinadores. O que nós queremos saber é se a introdução desses artigos esclarece de vez a relação entre agências captadoras, proponentes e patrocinadores. O cenário mais comum é a agência receber um fixo da empresa para receber ou prospectar projetos para ela e, quando a empresa aceita patrocinar algum, a agência recebe também os 10% referentes à captação. Outro é quando a agência faz o serviço de captação, mas recebe somente o referente à porcentagem por esse serviço constante na planilha do proponente – a empresa não paga nada. O que o Ministério pensa sobre isso?
HENILTON MENEZES – Olha, aí tem duas coisas que precisam ser observadas e por isso a gente colocou isso na Instrução Normativa porque a gente recebeu, durante o processo de consulta que fizemos para escrever esse documento e já antes, na época que eu estava na transição, já havia algumas denúncias, algumas queixas, algumas reclamações sobre essa questão da cobrança dessas agências, que é cobrar do patrocinador e cobrar do proponente. E além disso havia também, e é uma outra questão, de denúncias e relatos que a gente recebeu, de que as agências não estavam cobrando nada do patrocinador – elas estavam prestando serviço ao patrocinador e sendo remuneradas pelo incentivo fiscal.
É aí que mora o problema porque o valor de captação de recurso é uma concessão que a lei faz para que o proponente contrate um captador, porque ele não sabe fazer a captação, ele não sabe chegar nessas agências, ele não sabe chegar num empresário, ele não tem essa capacidade, então a lei permite que ele contrate um especialista em captação de recursos, e quando eu permito que o proponente faça isso, o serviço que está sendo prestado é para o proponente. Eu sou um proponente que tenho uma grana para captar, eu não sei captar, o Ministério me concede 10% do valor até o limite de 150 mil para contratar um especialista no mercado que vai fazer essa captação para mim, porque eu não sei fazer.
O que está acontecendo, e que a gente quer evitar, é uma distorção do mercado, como a empresa contratar um especialista em seleção de projetos e esse especialista receber do proponente. Aí você tem uma sinalização muito clara de vantagem indevida do patrocinador. O patrocinador contratou um serviço chamado prospecção de projetos, seja lá como é que vai se dar o nome, eu contratei para ir no mercado buscar projetos para mim, eu sou empresário, eu tenho que pagar por esse serviço. Eu não posso dizer, Eduardo, vai atrás dos projetos para eu patrocinar, faz uma prospecção, faz uma pesquisa, mas receba do proponente. Isso aí tá errado. O investidor precisa ter clareza de que isso é uma vantagem indevida e, se for caracterizado como vantagem indevida, o incentivo fiscal dele vai ser glosado.
Ouça áudio com resposta completa, inclusive com exemplos:
EM – Entendi. Em que circunstâncias a agência pode receber dos dois lados?
A gente também tem conhecimento de que essas agências vendem para os empresários uma coisa que não é permitida, porque eu já tive relatos de pessoas que dizem assim: empresário, eu vou fazer um trabalho para você selecionar os projetos, mas não precisa nem pagar nada, eu só quero garantir que vou usar o seu incentivo fiscal dos projetos que eu vou selecionar, e não precisa pagar nada porque a lei Rouanet permite receber do propoente, e aí o cara diz, tá ok. Não, a lei Rouanet não permite receber dos proponentes; a lei Rouanet só permite se o proponente contratar aquela pessoa. O próprio proponente pode nos denunciar a partir do momento que nós deixamos isso claro: se esse especialista não foi contratado pelo proponente, quem tem que pagar é quem contratou.
Agora, pode ter uma coisa casada, dar a alguém para fazer a minha captação e este mesmo alguém também ter um contrato com o patrocinador para que ele possa fazer prospecção de projetos? Pode, eu não posso interferir no mercado, não posso interferir na contratação de um empresário para uma pessoa que vai fazer prospecção. O que não pode é, a partir dessa contratação que o empresário faz para esse prospectador, se é que existe essa palavra, é fazer prospecção para ele e no final ficar sendo remunerado por alguém que não o contratou. Se isso ficar caracterizado, aquele investidor que recebeu vantagem indevida, porque isso é claramente uma vantagem indevida, ele não terá o seu incentivo fiscal homologado pelo Ministério da Cultura.
EM – Bom para deixar claro, a gente pediu informações a algumas agências, e uma das que se dispôs a responder tem acordo com uma grande empresa – e eu sei por que também conversei com a empresa – para fazer todo esse trabalho de avaliação, depois de encaminhamento, e para isso ela recebe um fixo, diretamente. E do projeto que ela consegue fazer com que o patrocinador apoie, ela cobra os 10%. Recebe, portanto, dos dois lados. A ABCR acha, de certa forma, que isso também não deixa de ser uma vantagem financeira indevida, porque, por exemplo, e esse é um dos argumentos que usaram: suponhamos que a empresa peça para essa agência projetos sobre Biblioteca. Então ela vai no mercado buscar os projetos que abordem Biblioteca. Só que é possível que ela direcione para a empresa o que for mais caro, para que ela possa pegar esse 10% maior. Isso é uma das justificativas que a Associação deu. O que você acha desse posicionamento?
HM – Parece que tem uma linha tênue entre uma coisa e outra. Você tem ali um proponente, vamos supor que você, Eduardo, seja o cara que está entre a empresa e o proponente. O Eduardo prestando serviços para a empresa na prospecção dos projetos. Só que eu, que tenho um projeto, que vou ser beneficiado, eu não contratei o Eduardo para captar para mim. Se o Eduardo chega para mim e diz assim, olha, eu tenho um investimento para fazer no seu projeto, vai caber ao proponente contratar ou não essa pessoa. Porque uma coisa é o Eduardo chegar para mim e dizer Henilton, você tem um projeto para captar, você quer me contratar para fazer sua captação? Eu digo quero, me contrate e você vai buscar patrocínio e eu vou lhe pagar para isso. Outra coisa é o Eduardo dizer assim para mim: olha, eu tenho uma empresa que está me pagando para fazer prospecção e eu selecionei seu projeto para isso. Eu não sou obrigado a pagar esse cara. E se ele obrigar a ser feito o pagamento, esse proponente pode denunciar para a gente. Quando eu falo dessa linha tênue é porque o fato de o proponente contratar ou não esta pessoa para prospectar a captação é que justifica o pagamento, não o inverso.
Ouça a resposta completa:
EM – Existe outro cenário de essa agência contratada pela empresa para fazer a prospecção abrir um canal de encaminhamento de projeto. O interessado vai lá na página dela, cadastra o seu projeto, ó, meu projeto é esse aí, vê se arruma patrocinador para mim.
HM – Eu também tive conhecimento disso, mas nesse caso, por exemplo, como proponente, vou na página dessa agência e ofereço meu projeto. No princípio, eu já estou contratando a agência. Eu já estou concordando que aquela agência vai me representar para fazer a captação.
EM – Outra coisa que a ABCR alega é que a empresa pode contratar a agência com fixo direto de 10 reais, valor simbólico, não pode pagar 10 mil, vamos pagar 10 reais. Mas isso é difícil de provar, você não tem como provar isso, né?
HM – É. É exatamente. É a situação mais grave, muitas vezes o próprio patrocinador não sabe. É por isso que a gente quis colocar na Instrução Normativa muito claro, pois o próprio patrocinador não sabe que ele não poderia fazer isso e não sabe que tá recebendo uma vantagem indevida. Porque tem captador que vende esse serviço para o empresário e eu já soube de vários casos que é exatamente isso. Eu vou no empresário e digo, olha, você me contrata para fazer a seleção dos seus projetos e você não precisa pagar nada não; eu vou receber dos proponentes. Às vezes o empresário acha que isso é lícito. Agora nós estamos dizendo claramente que contratação de serviço para o empresário tem que ser pago pelo empresário.
EM – Até porque o empresário deve pensar, pô, esse cara está trabalhando de graça para mim. Estranho não é?
HM – Exatamente. E se o empresário souber que, se ficar caracterizado que é a vantagem indevida, e perder o incentivo fiscal, ele não vai querer entrar nessa.
EM – É verdade…
HM – É um risco, que geralmente os empresários sérios, inclusive aqueles que têm compliance, que têm uma Governança maior, não querem entrar nessa roubada.
EM – É roubada e tem muita gente que a gente sabe que tá fazendo isso, mas é por desconhecimento também, ou por malandragem ou por desconhecimento.
HM – Nessa questão da Instrução Normativa, a gente deixou isso muito claro quando a gente diz aqui, no parágrafo terceiro: “a remuneração pela captação de recursos é exclusiva para prestação de serviço diretamente ao proponente, sendo vedada a remuneração de serviços prestados diretamente ao incentivador. Então, para você traçar essa linha de corte, quem é que está contratando aquele cara? É o proponente ou o patrocinador? E lá na vantagem indevida, quando a gente fala do que é vedado, que é o artigo 21, no Inciso sexto, afirma que é vedada a utilização para pagamentos de serviços consultoria e avaliação de projetos prestados ao patrocinador.
Na hora que o patrocinador vê isso aqui, ele sabe que está claro, ele não pode usar dinheiro do incentivo fiscal para pagar serviços prestados a ele. As grandes empresas, que tem essa estrutura melhor, como a Vale, Itaú, essas empresas grandes, Petrobrás, que são grandes patrocinadores, eles não entram nessa.
EM – Você tem sentido essa preocupação por parte dos proponentes?
HM – Nessas rodadas de conversa que estamos tendo também com os gestores culturais, equipamentos, museus e tal, uma das questões que eles estavam muito preocupados era não incorrer nessa impropriedade e que, eventualmente, tivesse o risco do patrocinador deles. A gente tentou, nessa Instrução Normativa, deixar o mais claro possível, mas pode ser até que a gente perceba que precisa clarear mais ainda.
EM – Eu acho que vai precisar sim, porque eu tô ouvindo vários lados e eu também fiquei em dúvida quando a representante da ABCR citou esse caso da Biblioteca, por exemplo. Aí você pensa, pô, é verdade, você tem agências sérias, mas você tem também um monte de picareta e essa recebe 30 projetos de Biblioteca, ela vai escolher um mais caro. É um lusco-fusco mesmo, né?
HM – É. Aos poucos, a gente vai tentar organizar… Por isso que estou te falando, porque eu sempre defendo que as Instituições Normativas, que são atos da ministra, elas servem também para ir modernizando o sistema. A partir do momento que eu começo a fazer a escuta, e a gente fez escutas para essa Instrução Normativa, a partir do momento também que eu tenho aqui a CNIC funcionando, que é a Comissão Nacional, que estava completamente sem função, sem protagonismo, a CNIC também é uma ferramenta de gestão que pode nos auxiliar a ir evoluindo nessa normativas, a gente pode ir clareando isso ao longo do tempo. Você sabe que escrever um documento com essa complexidade de informação, sempre vai passar alguma coisa. Então um dos motivos de a gente estar fazendo esses diálogos é perceber que isso aqui não ficou claro como a gente pensava que poderia ter ficado. E a gente pode clarear mais depois.
OBS: Na próxima semana, o terceiro episódio trará o depoimento de quem busca por patrocínio para seus projetos.
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos ou ações, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.
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