
Na economia da cultura não se troca pessoas por robôs. Essa foi uma frase entre várias outras que compuseram os pensamentos de Nichollas Alem durante essa longa entrevista sobre mercado da cultura, política pública, direito autoral e, sobretudo, sobre este momento em que a pandemia só faz aumentar os dissabores de um setor responsável por fatia relevante do Produto Interno Bruto, mas que busca enxergar uma saída dos escombros após ter a saúde abalada por acontecimentos dos quais o vírus surge apenas como um componente.
Nichollas é bacharel e mestre em Direito Econômico pela USP. Fundador e Presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes (IDEA). Especialista em Direito do Entretenimento. Consultor da UNESCO em equipamentos culturais. Atuou na construção do Programa Municipal de Economia Criativa de São Bernardo do Campo, é membro da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI) e certificado pelo Copyright de Harvard.

Sua visão do quadro atual é crítica, técnica e recheada de argumentos que embasam opiniões sobre a importância da economia criativa ou de que a existência de um Ministério da Cultura é menos importante do que a ausência de uma política pública.
Sobre esse último item, Nichollas diz ter feito um estudo para saber se outros países possuem Ministério autônomo e constatou que vários tem perfil histórico de adotar esse formato, mas política de cultura não depende de Ministério.
“A questão não é ter Ministério em si, mas o lugar onde você coloca política pública de cultura ou, no caso, a completa inexistência dela, dentro da burocracia, dentro da pauta pública. Hoje você colocar a Secretaria de Cultura dentro do Ministério de Turismo é, de um lado, limitar muito o que ela poderia ser, limitar muito o potencial que ela tem não apenas cultural, mas social, econômica, educacional, política, mas é também muito sintomático essa falta de política, de um projeto nacional de política pública para o País, coisa que outras tantas nações, se você fizer uma pesquisa, verá que elas têm, com projetos muitos sólidos de cultura”.
E citou exemplo clássico: “Os Estados Unidos, que é o grande arauto do liberalismo, do suposto estado mínimo, é um país que tem uma forte política pública de Estado não apenas de fomento, mas principalmente de abertura internacional para suas indústrias. Veja como ele atua para garantir os interesses de Hollywood, e isso desde o começo, da fundação de sua indústria”.
Outro ponto abordado na conversa foi o descumprimento do Artigo 215 da Constituição, que afirma:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
E lembrou que o atual Governo também não cumpre o Artigo 219, no capítulo da Ciência, Tecnologia e Inovação:
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.
De fato, são palavras apenas. O espírito da lei vagueia sobre nuvens que impedem ao menos um vislumbre de sua existência.
ÁUDIOS – Autor de um detalhado balanço sobre o ano e meio do Governo Bolsonaro (ver link no final dessa matéria), a entrevista com Nichollas Alem à Marketing Cultural foi gravada e, mais interessante do que ler, será ouvir suas colocações sobre diversos temas. Abaixo seguem resumo de pontos da conversa e reprodução completa das respostas.
Você acha que o atual governo está cumprindo o artigo 215 da constituição?
Em sua resposta, Alem defende que, em função desse artigo, a postura do Estado não pode ser simplesmente abstencionista, de não fazer nada. Em função dele o Estado precisa criar políticas culturais com esses objetivos e no primeiro ano e meio do Governo Bolsonaro houve um desmonte das políticas que tínhamos até então. E o grande problema é que não há nada para por no lugar.
Ouça:
Que avaliação você faz sobre a extinção do Ministério da Cultura….

Nichollas anunciou ter feito um estudo sobre a existência de Ministérios da Cultura em outros países e defende que política de cultura não depende de Ministério. A existência dele representou a organização da política pública em nosso País e ao redor dele é que deveriam ser discutidas correções estruturais da lei Rouanet, por exemplo, ou outras formas de política que não sejam de lei de incentivo.
O problema, porém, não é a existência do Ministério, mas o lugar onde você coloca a política pública de cultura, e a completa inexistência dela. Para ele, colocar a Secretaria de Cultura dentro do Ministério do Turismo demonstra a ausência de de um projeto nacional de cultura para o País.
Como argumento, lembrou a experiência dos Estados Unidos, que apesar de ser o arauto do liberalismo, do Estado mínimo, tem uma forte política de Estado para a cultura.
Ouça:
Você tem informação de quanto a economia criativa, particularmente o setor cultural, foi afetada por esse desmonte das ferramentas que a gente ainda tinha no setor?
Nesse trecho, lembra que a economia criativa representa de 2% a 5% do PIB nacional, dependendo do ano e do método que se utiliza para verificar esse valor agregado ao PIB. É um setor bastante expressivo, bastante relevante para a economia nacional, e que emprega bem, sejam empregos informais ou formais.
“Na economia da cultura – afirma – não se troca pessoas por robôs, por máquinas; são pessoas que estão trabalhando ali e há uma cadeia toda de serviços formada por pessoas; então ele é bastante relevante”. Vê o setor como um dos mais prejudicados pela pandemia, porque foi o primeiro obrigado a fechar e será um dos últimos a abrir.
Evita falar em números do impacto porque existem informações muito divergentes, pois não há uma métrica legal para se estimar.
Ouça:
Mas no ano passado já houve uma interferência no setor audiovisual, que estava crescendo bastante…
Nichollas lembra que a Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura já tinha identificado que o setor cultural representava mais que o setor extrativista no Brasil, mais do que o setor de energia.
“Tem um estudo da SP Sim afirmando que a área audiovisual do Brasil já é maior do que a indústria de fármacos e, também, que a indústria de papéis. A economia criativa cresce no mundo a níveis mais altos e consistentes do que o resto da economia”.
Então era um setor que estava indo bem, um setor bastante dinâmico economicamente e que já estava sofrendo antes mesmo do covid, como você bem colocou. Todo esse desmonte, toda essa demora para regulamentar essas políticas, ou a não renovação dessas mesmas políticas, afeta muito negativamente o setor cultural, muito negativamente”.
Ouça:

O único mecanismo que funciona como um impulsionador do mercado da cultura é a lei Rouanet. Não é o melhor dos mundos, mas é o único que a gente tem em termos federais, que tem sido muito atacada por pressão ideológica. E várias alterações foram feitas ultimamente. Você acha que essas alterações, feitas no ano passado, tiveram algum reflexo positivo no mercado?
Na opinião de Nichollas Alem, quando se fala em lei Rouanet, na maior parte das vezes ela é atacada por uma má compreensão do funcionamento do instrumento e com informações erradas mesmo. Lembra que a Rouanet não é apenas a lei de incentivo. Ela é um instrumento baseado em três pilares e que deveriam funcionar um complementando o outro.
“Quando a gente faz a crítica do mecenato a gente deveria, na verdade, perguntar por que os outros dois pés – Fundo Nacional de Cultura e Ficart – não estão funcionando. Então discutir reformas e ajustes que a Rouanet passa é legal, é importante, porque afeta o dia-a-dia do produtor, mas a gente nunca teve uma reforma estrutural propriamente dita desse instrumento”.
Ouça:
Nichollas considera que essa é boa discussão a respeito do Art. 18. Pergunta se a lei Rouanet deveria manter os 100% de isenção, considerando que foi proposta para incentivar o marketing cultural, incentivar a cultura do patrocínio privado, ou o Fundo Nacional de Cultural deveria financiar a integralidade dos projetos com recursos públicos, ou ainda se deve haver modelos mistos?
Reflete também sobre a concentração de patrocínio no Sudeste e sugere que se deveria repensar o formato na sua estrutura.
Ouça:
Estamos fazendo levantamento para mostrar que a maioria dos investimentos feitos pelas empresas, com uso da lei Rouanet, beneficia Institutos, projetos socioculturais, mas a questão de utilizar a cultura como um elemento de atrair simpatizantes, pelas empresas em si, independente de incentivo fiscal, é uma coisa que elas não compreendem; só compreendem o benefício fiscal que vai trazer. Uma coisa curiosa: você vê nos sites que o espaço dado aos investimentos na área social – saúde, educação… – é muito maior e as aplicações feitas nesses projetos é muito menor em relação aos projetos culturais. Muitas delas nem citam os apoios e muito menos os valores – utilizam R$ 10 milhões, R$ 12 milhões por ano e nem se preocupam em mostrar o que fazem com essa verba. Põem dinheiro nos projetos e pronto! O que você acha sobre esses pontos?
O entrevistado lembra que pesquisa feita há alguns mostrou que o perfil sociológico do brasileiro indica as causas que ele costuma ajudar e a cultura não é uma prioridade, mas crê que, talvez, com as plataformas de crowdfunding, as coisas podem melhorar. E concorda: “a cultura ainda não é o lugar de excelência aonde as empresas olham para fazer seu marketing”.
Ouça:
Você é membro da ABPI. Qual o maior desafio que você vê hoje com essa nova dinâmica na defesa da propriedade intelectual?. Antigamente você tinha uma pirataria de outras formas. Agora você tem um universo completamente diferente com a Internet.
Nesse trecho Nichollas Alem comenta que, nos primeiros anos as empresas tinham postura penalista, atacavam pessoas físicas, muitos processos, e depois, as plataformas, em vez de lutar contra a pirataria propriamente dita, está oferecendo um serviço de streaming onde a pessoa consegue tudo pagando um preço acessível, com conforto e segurança.
E sentencia: “a propriedade intelectual sempre estará correndo atrás da inovação tecnológica, da inovação cultural. A lei nunca vai conseguir acompanhar a velocidade que essas transformações passam”.
Ouça:
Nichollas escreveu artigo onde fez um balanço sobre a política cultural durante esse ano e meio do Governo Bolsonaro, que reproduzimos por aqui.
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos ou ações, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.
