Passado é Imutável. Só Nos Resta Compreendê-lo

Eduardo Martins*

Tempos de Racismo. De Ontem e de Hoje

Escrevi esse artigo há algum tempo e estava esperando a oportunidade certa para publicá-lo e creio que hoje é adequado por ser o Dia da Consciência Negra.  Sua intenção não é defender teses, mas suscitar reflexões entre o que é passado e o presente.

Era 1987, 1988, por aí, estava jantando com uma americana correspondente da Associated Press em Brasília cujo nome nem lembro mais. Falávamos sobre cinema, ela perguntou se eu gostava de faroeste, disse que sim, ela quis saber qual era o meu filme favorito e respondi The Searchers, que no Brasil apelidaram de “Rastros de Ódio”.

– Detesto esse filme, ela disse.

– Mas por quê? Acho um filme brilhante!

– Porque é um filme racista.

Pouco adiantou argumentar que racista era o personagem Ethan, interpretado por John Wayne, cujo ódio por índios se tornou ainda mais obsessivo após seu irmão ter sido morto por eles, juntamente com a cunhada por quem tinha uma, veladamente correspondida, paixão enrustida. Para piorar as coisas, a tribo do chefe Scar (cicatriz) sequestrou suas duas sobrinhas, o que levou Ethan a uma jornada de vários anos até encontrar uma delas aculturada e por quem teve desejos de matar, mas se rendeu a sentimentos melhores e a trouxe para casa aninhada em seus braços. Redimiu-se, no final.

Chefe “Scar”. Foram anos de perseguição.

É fato que John Ford, o cultuado diretor de Rastros de Ódio, geralmente tratava os indígenas como aqueles agressores que insistiam em atacar os pioneiros do velho oeste, que após tanta perseguição desenvolveram a tática de formar círculo com as carroças para se protegerem das flechas. Mas o que dizer, então, de David W Griffith, diretor de O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation), de 1915, que procurou reconstituir a história da Guerra de Secessão norte-americana (1861-1865) e seus efeitos posteriores, a quem artistas do naipe de Glauber Rocha, Chaplin, Eisenstein, Orson Welles consideravam “pai” do cinema e precursor do domínio de Hollywood sobre essa indústria em todo o mundo.

Esse é um clássico que deve ser conhecido por todos que amam cinema e, no entanto, é um filme claramente racista, condição evidenciada até nos letreiros de sua narrativa, onde se identificam diversos estereótipos e se enaltece o surgimento da Ku Klux Klan, organização defensora da supremacia branca, mostrada como se fosse o esteio da unidade nacional dos Estados Unidos.

Mas a ideologia não deve cegar a revolucionária e brilhante estética apresentada por W Griffith, que até hoje é objeto de estudo. Esse é o ponto. Se existe alguma coisa que não pode ser apagada é a História, embora sempre tenha havido tentativas de escondê-la, manipulá-la, dissipá-la, editá-la, mas o que houve, houve, e a história do mundo é construída como uma novela de época que mostra a saga de uma família, no caso a dos hominídeos. E a construção dessa família, até chegar à classificação de Homo Sapiens, passou por muitas transformações. E ainda está se transformando.

Não vou deixar de admirar O Nascimento de Uma Nação por suas mensagens racistas, ou não ver Rastros de Ódio porque seu diretor não tinha lá muita simpatia por índios, e nem vou deixar de ler Cabrera Infante por ser cubano ou ouvir Wagner porque ele era inspiração para Hitler.

Quem não conseguir entender o contexto de cada época cairá na arapuca de ver o passado com os olhos do presente. E quem só aceitar viver dentro do universo de sua ideologia vai perambular para sempre com a venda da ignorância.

A história humana é marcada pelo machismo e as mulheres só agora estão podendo se livrar, pelo menos na cultura ocidental, do estigma milenar simbolizado pela obrigação, no casamento, de jurar obedecer ao marido sim ou sim.

Mas tanto John Ford, W Griffith, assim como os personagens femininos das séries Mad Man e Little Big Lies, que retratavam mulheres submissas e infelizes, refletem os sentimentos de determinadas épocas, que devem ser fontes de conhecimento, de compreensão e de parâmetro para medir o quanto estamos avançando nas relações humanas.

Compreender não quer dizer concordar. Ou será correto justificar a pichação na estátua de Winston Churchill por ter sido ardoroso defensor do Império Britânico? Ele era mesmo – a preservação intacta da Commonwealth estava no topo de seus desejos e para mantê-la lutava com todas as suas forças, fosse contra Hitler ou contra Gandhi. Quem um dia ingressar pela ala leste da Abadia de Westminster, em Londres, verá que, logo na entrada, a primeira pedra entre as tantas que homenageiam os grandes nomes da história britânica, carrega o nome de Sir Winston Churchill. Ele fez por merecer essa honra, a despeito de muitas de suas opiniões serem questionáveis.

“Ele foi um racista”, diz a pichação em estátua de Churchill (imagem de Isabel Infantes – AFP)

Como é preciso reconhecer que E o Vento Levou, de 1939, épico romance histórico rodado dentro do contexto da Guerra Civil americana (de novo), dirigido por Victor Fleming, também tinha fortes conotações racistas, mas até hoje, ajustada a inflação, é o filme de maior bilheteria da história do cinema. E querem sumir com ele. Pode isso, Arnaldo?

Recentemente queriam derrubar a estátua do Borba Gato, em São Paulo, assim como poucos anos atrás tentaram abolir das escolas as obras de Monteiro Lobato por não se enquadrarem no quadro atual do politicamente correto, na visão de quem se acha no direito de ser juiz da moral alheia. Muita gente morreu na fogueira por causa disso.

Na escala mais rasteira da miséria humana, coloco o racismo somente um degrau acima da tortura. Esses dois elementos, enquanto existirem e forem tolerados, tornam imprópria a classificação de nossa espécie como civilizada.

A construção de nossa história faz parte de um processo que às vezes progride e às vezes regride.

Mas o passado está na prateleira dos fatos imutáveis e, para fazer uma análise justa, é preciso compreendê-lo com todas as suas circunstâncias. E isso não se faz com venda nos olhos.

*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos ou ações, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.

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