Endowment. Ainda será preciso descobrir uma palavra em português que traduza exatamente o que essa expressão inglesa significa, pelo menos para refletir o que ela representa atualmente. Em seu sentido expresso pode ser entendida como doação, dote, outorga, mas no universo empresarial ou de grandes instituições ela tem outro significado e uma aplicação certeira: é um fundo de investimentos patrimonial, cujos dividendos servem para a sustentação financeira de uma entidade, seja de cunho cultural, social, de estímulo à ciência, à educação ou outros de interesse público.
No dia 4 de janeiro último o presidente da República sancionou a lei número 3.800 que autoriza a “constituição de fundos patrimoniais com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público”.
O que isso significa? Muito para o 3º Setor e mais ainda para a cultura. E há fortes razões para isso. A lei Rouanet, ao mesmo tempo em que se transformou no mecanismo de maior fomento da produção cultural brasileira, também estimulou a lógica de projetos de curto prazo, impulsionados por patrocínio de empresas públicas ou privadas. Na falta de instrumentos legais seguros que lhes permitissem buscar financiamento mais duradouros, as entidades sem fins lucrativos só tinham aquele caminho para trilhar em busca de apoio para suas ações (ou concorrer para conseguir verba via editais).
Com a sanção da lei sobre fundos patrimoniais, o que era delimitador tornou-se uma vantagem única: de todos os setores abrangidos por esse instrumento – educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social, desporto, segurança pública e direitos humanos – a cultura foi a única em que foi preservado o direito a utilização de incentivo fiscal, justamente o oferecido pela lei Rouanet. Todos os outros tipos de incentivo foram vetados pelo presidente Jair Bolsonaro.
A garantia desse direito está explícita no § 9º do Artigo 13 da lei, que afirma:
- 9º – As doações efetuadas por meio das modalidades de que tratam os incisos II e III do caput do art. 14 desta Lei são alcançadas pelos arts. 18 e 26 da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro 1991, desde que estejam em conformidade com o mecanismo previsto pelo inciso III do caput do art. 2º da referida Lei.
O Artigo 14, ao definir quais modalidades de doação o fundo patrimonial poderá receber, indica que é possível: Inciso II – doação permanente restrita de propósito específico; e Inciso III – doação de propósito específico.
A doação permanente restrita de propósito específico é um recurso cujo principal é incorporado ao patrimônio permanente do fundo patrimonial, não podendo ser resgatado, e os rendimentos podem ser utilizados em projetos relacionados ao propósito previamente definido no instrumento de doação.
Já a doação de propósito específico é um recurso atribuído a projeto previamente definido no instrumento de doação, que não pode ser imediatamente utilizado e que deve ser incorporado ao patrimônio permanente do fundo patrimonial para fins de investimento, cujo principal pode ser resgatado pela organização gestora de fundo patrimonial de acordo com os termos e as condições estabelecidos no instrumento de doação.
Trocando em miúdos: agora as entidades do 3º Setor terão segurança para criar seus fundos patrimoniais e buscar doadores tanto para gestão de longo prazo quanto para a viabilização de projetos específicos. E as que têm cunho cultural serão as únicas que poderão fazer isso se valendo de incentivo fiscal, justamente os oferecidos pela lei Rouanet tanto em seus Artigos 18[1] como o 26[2].
SUSTENTAÇÃO – A formação de um fundo patrimonial por entidade do 3º Setor poderá contribuir para suspender a trágica rotina da falta de recurso para sua manutenção ou da interrupção de projeto social devido à perda de patrocinador (es) que garantia sua viabilização. Como fontes não permanentes de financiamento tornam organizações frágeis, suscetíveis a variações externas, o fundo oferece a oportunidade de a entidade fortalecer sua sustentação do ponto-de-vista operacional.
Porém, apesar de ser uma excelente opção de financiamento, o fundo não pode cair na armadilha de ser visto como única fonte de recurso. Os valores precisam gerar rendimento suficiente para suprir suas necessidades e, para isso, o montante captado necessita ser significativo, o que reforça a tese de que é importante se obter doações e investimentos de fontes variadas.
A formação do fundo patrimonial pode contribuir positivamente para mudar a tendência, plenamente justificada antes da sanção dessa lei, de que as instituições buscam soluções de curto prazo, já que seus projetos não podem esperar por rendimentos de aplicações de longo prazo. A maioria, por sinal, tem dificuldade para pagar as contas.
CULTURA – Museus, orquestras, companhias de teatro, de dança e várias instituições culturais que realizam trabalho de caráter permanente e contínuo passam a contar com um mecanismo adequado para sua sustentabilidade financeira perene. Porque o sentido maior do endowment é esse – a perenidade da sustentação econômico/financeira das entidades. Como podem receber doações de pessoas físicas e jurídicas, o fundo funcionará como um patrimônio perpétuo que vai gerar rendimentos contínuos para conservação, expansão e promoção das instituições a ele vinculadas.
Ricardo Levisky, fundador da Levisky Legado, empresa especializada em sustentabilidade financeira para a formação de Legados, e que já presidiu três Fóruns para discutir exclusivamente sobre fundos patrimoniais, tem o seguinte conceito a respeito do endowment, emitido durante Fórum internacional sobre o assunto realizado em 2016:
“A lógica elementar do endowment corresponde à ideia de legado: trata-se de uma forma de engajamento da sociedade civil em torno de um patrimônio comum. Além de legislações específicas que regulem e protejam a operação dos endowments, o cenário brasileiro precisa aprimorar suas práticas de governança, transparência e planejamento de longo prazo no setor cultural. A profissionalização da gestão e o planejamento de longo prazo devem servir como baliza para que se amplie o investimento social privado no campo cultural brasileiro. Esse é o caminho a ser percorrido se almejamos falar de sustentabilidade além da utopia.”
E campo para vicejar boas práticas e profissionalismo gerencial não falta. As atividades culturais no Brasil já são responsáveis por 2,64% do Produto Interno Bruto (PIB), geram mais de um milhão de empregos diretos formais e são mais de 200 mil empresas e instituições que estão envolvidas com o setor, conforme dados do extinto Ministério da Cultura.
CULTURA DOADORA – Equivoca-se quem pensa não existir uma cultura doadora no Brasil. Pesquisa realizada pelo IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social), denominada Doação Brasil, realizada em 2016, mostrou que 46% dos brasileiros com mais de 18 anos e renda familiar acima de dois salários mínimo fizeram doações no ano anterior. O lado ruim é de que a área cultural não constou na lista das 15 causas mais sensibilizadoras, como outras que envolveram câncer infantil, idoso ou crianças em situação de risco. O advento da lei Rouanet pode ser uma das causas para isso já que a maior parte da contribuição é dada via patrocínio e não como doação, embora ela esteja prevista no texto da lei. Quando se trata de apoiar a cultura, a maioria das empresas tem preferido esse mecanismo.

A pesquisa identificou também que a desconfiança é um sentimento que permeia tanto a prática como a recusa em doar. Ela resulta de um fator cultural, mas também é alimentada pelo ambiente.
O fator cultural consiste na desconfiança que historicamente os brasileiros (e também os latinos em geral) depositam nas Instituições – judiciais, policiais e militares – e no Governo. Naturalmente, essa desconfiança é estendida para outros tipos de instituições, inclusive as sociais.
O ambiente também alimenta o sentimento de desconfiança porque a divulgação de escândalos de desvios de recursos e o marketing excessivo de algumas Instituições, que depois se comprovaram inidôneas, concorrem para sedimentar a percepção de que “o discurso não corresponde à prática”.
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Entre os doadores, um achado que o levantamento considerou interessante é que existe propensão maior a doar entre aqueles que têm religião, principalmente católica e espírita. Muitos afirmam que esse ato está relacionado ao desejo íntimo de se “desenvolver como pessoa” e se “sentirem bem consigo mesmos”. Portanto, em alguns casos, a crença religiosa modifica a visão que o indivíduo tem do seu papel e de sua missão, em relação a si mesmo e à sociedade.
Mas o que explicaria a motivação dos não-religiosos a doar? Sem o “drive” da religião, o que os impulsionaria a essa prática? A pesquisa revelou que entre os não-religiosos a motivação é alavancada pelo sentimento de coletividade (o indivíduo como agente da mudança e corresponsável pela solução dos problemas) e pela “proximidade” com alguma causa. Essa proximidade significa tanto o contato direto e a confiança em uma determinada instituição, como o fato de ter uma história pessoal que os tornam sensíveis a algumas causas.
GOVERNANÇA – É preciso saber que fundos patrimoniais não são fundos de investimento. Ele tem a obrigação de preservar perpetuamente o valor doado, para que este gere rendimentos como forma de garantir a sustentabilidade financeira da organização no longo prazo ou por um período de tempo pré-definido.
O valor dos rendimentos é utilizado no custeio de despesas operacionais, manutenção das atividades, projetos específicos ou outro fim específico da instituição, mantendo intacto o investimento inicial no longo prazo.
Ele deve ser separado contabilmente do patrimônio operacional da instituição, para facilitar a visualização da manutenção de seu poder aquisitivo e a não utilização para outros fins, podendo, inclusive, constituir uma personalidade jurídica separada da organização beneficiária.
Os fundos devem possuir regras claras para o uso e aplicação dos recursos, visando a perpetuidade da ação filantrópica, exigindo um modelo de gestão de investimentos e uma governança adequada.
Em suma, os fundos patrimoniais garantem ao doador que o dinheiro será aplicado na causa escolhida por ele; seu uso será regido por normas rígidas e transparentes e a aplicação irá durar o tempo que o investidor definir.
O que antes era uma fresta, com essa lei escancarou-se uma porta para a sustentabilidade de qualquer instituição que souber ultrapassa-la com sabedoria. E a cultura, enfim, ganhou mais um mecanismo que poderá ajuda-la a cumprir sua missão. (E.M.).
[1] Art. 18. Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural, como através de contribuições ao FNC, nos termos do art. 5o, inciso II, desta Lei, desde que os projetos atendam aos critérios estabelecidos no art. 1o desta Lei.
- 1o Os contribuintes poderão deduzir do imposto de renda devido as quantias efetivamente despendidas nos projetos elencados no § 3o, previamente aprovados pelo Ministério da Cultura, nos limites e nas condições estabelecidos na legislação do imposto de renda vigente, na forma de:
- a) doações; e
- b) patrocínios.
- 2oAs pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real não poderão deduzir o valor da doação ou do patrocínio referido no parágrafo anterior como despesa operacional.
- 3o As doações e os patrocínios na produção cultural, a que se refere o § 1o, atenderão exclusivamente aos seguintes segmentos:
- a) artes cênicas;
- b) livros de valor artístico, literário ou humanístico;
- c) música erudita ou instrumental;
- d) exposições de artes visuais;
- e) doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para a manutenção desses acervos;
- f) produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual;
- g) preservação do patrimônio cultural material e imaterial.
- h) construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes.
[2] Art. 26. O doador ou patrocinador poderá deduzir do imposto devido na declaração do Imposto sobre a Renda os valores efetivamente contribuídos em favor de projetos culturais aprovados de acordo com os dispositivos desta Lei, tendo como base os seguintes percentuais: (Vide arts. 5º e 6º, Inciso II da Lei nº 9.532 de, 1997)
I – no caso das pessoas físicas, oitenta por cento das doações e sessenta por cento dos patrocínios;
II – no caso das pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, quarenta por cento das doações e trinta por cento dos patrocínios.
- 1oA pessoa jurídica tributada com base no lucro real poderá abater as doações e patrocínios como despesa operacional.
- 2oO valor máximo das deduções de que trata o caput deste artigo será fixado anualmente pelo Presidente da República, com base em um percentual da renda tributável das pessoas físicas e do imposto devido por pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real.
- 3oOs benefícios de que trata este artigo não excluem ou reduzem outros benefícios, abatimentos e deduções em vigor, em especial as doações a entidades de utilidade pública efetuadas por pessoas físicas ou jurídicas.
LINKS
Em decorrência do Fórum Internacional sobre Endowment, realizado em 2016, a Levisky Legado publicou três Manuais envolvendo Conceitos e Benefícios, Orientações Práticas para Implementação de Endowment em Instituições Culturais e Aspectos de Regulação e Tributação.
Os dois primeiros disponibilizamos abaixo, já que várias informações e citações, algumas literais, constantes neste post, foram retiradas dessas ferramentas.
CONCEITOS E BENEFÍCIOS DOS ENDOWMENTS COMO MECANISMO DE FINANCIAMENTO À CULTURA
ORIENTAÇÕES PRÁTICAS PARA IMPLEMENTAÇÃO DE ENDOWMENTS EM INSTITUIÇÕES CULTURAIS
ÍNTEGRA DA PESQUISA SOBRE DOAÇÕES – IDIS