A pandemia, a melhoria da conectividade e avanços tecnológicos estão determinando o futuro da experiência em vídeo e a porta de entrada principal para o consumo de conteúdo se abriu para as Smart TVs e nesse campo os celulares não conseguem concorrer.
Essa foi apenas uma das conclusões do interessante documento divulgado pela Kantar denominado O Futuro da Experiência em Vídeo, relatório que apresenta as tendências e as oportunidades relacionadas à experiência do consumidor e comportamento da audiência nos próximos anos.
Ao longo de 60 páginas o estudo revela porque as televisões inteligentes vão dominar o mercado de streaming, que haverá incessante busca entre os maiores players pelas franquias de conteúdo, cada vez mais dependentes da propriedade intelectual, que oportunidades surgirão para o produto local, que o 5G não substituirá a rede doméstica e como será a relação entre canais com assinatura paga e inserção de anúncios.
Faremos aqui uma compilação dos pontos mais interessantes revelados pelo relatório, cuja íntegra pode ser acessada no final dessa matéria.
As TVs chamadas de “inteligentes” – conectadas à internet – já existem há algum tempo. No entanto, as primeiras interfaces eram ruins e a conectividade de banda larga precária, de modo que o foco principal estava nos dispositivos conectados à tela da TV (set-top boxes, devices USBs e consoles de jogos) e no espelhamento de aparelhos móveis como tablets e celulares.
Durante a pandemia, no entanto, muitas casas passaram a explorar de uma forma mais ampla todas as funcionalidades das TVs conectadas. Agora, estamos chegando ao ponto de virada na introdução e utilização da Smart TV, com os consumidores utilizando cada vez mais suas TVs para acessar conteúdo diretamente da tela, se conectando a ela por meio de aplicativos e serviços IP integrados/embutidos.
A Smart TV agora é o principal impulsionador do aumento do uso dos serviços de streaming. O celular é um meio bem estabelecido e dominante em muitas atividades, mas quando o assunto é vídeo, o consumidor busca a melhor tela possível. Dados do Reino Unido e do Brasil – coletados por meio dos aparelhos “focal meter” da Kantar para medir o consumo de todos os dispositivos da casa – mostram que a grande maioria da transmissão e visualização de SVOD (Subscription Video on Demand – vídeo sob demanda a partir de assinatura) está na tela principal da TV.
Os dados do Kantar Comtech mostram que nos mercados da UE5 (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Itália e Espanha), 64% dos lares possuem uma Smart TV. Em outros mercados fora da Europa, como no Brasil, a penetração da TV conectada mais que dobrou em apenas quatro anos, estando presente em 57% das residências em 2021.
O aumento global dos serviços de SVOD acaba sendo um importante estímulo, pois os espectadores procuram aproveitar as produções de alta qualidade nas maiores telas possíveis. O tamanho da tela e a resolução da imagem continuam crescendo. Dados do primeiro trimestre de 2022 do “Kantar Comtech” mostram que, em cinco mercados, 44% de todos os aparelhos de TV agora têm um tamanho de 45” ou mais.
BRIGA PELAS FRANQUIAS – Grandes empresas de mídia avançam para uma integração vertical, lançando serviços para alcançar diretamente o consumidor (DTC). Nesse contexto a importância das “content brands” ou, franquias de conteúdo, aumenta. As plataformas globais estimularão as produções locais, enquanto players locais e regionais buscam se diferenciar para competir. A integração vertical DTC só é possível por conta da propriedade intelectual.
A programação, especialmente de serviços de SVOD e AVOD, é cada vez mais baseada na exploração de marcas e franquias de conteúdo, as chamadas “content brands”.
A aquisição da 20th Century Fox pela Disney, por exemplo, e o valor gasto na aquisição da Pixar (US$ 7,4 bilhões), da Lucasfilm (US$ 4 bilhões) e da Marvel (US$ 4 bilhões) estabeleceram claramente os pilares da oferta global da Disney, preparando o terreno para o lançamento do Disney+ e sua integração vertical.
A aquisição dos estúdios MGM pela Amazon em 2022 foi rapidamente seguida pelo anúncio de um game show de James Bond, sem dúvida o primeiro de muitos produtos de entretenimento da franquia Bond.
Fica claro que a busca será por potenciais novas franquias, sejam elas Stranger Things ou Bridgerton, ao passo que o sucesso de Round 6 mostra que a programação de origem local pode se tornar global e o padrão futuro não precisa ser apenas o de Hollywood. Segundo o estudo, é importante desafiar a ideia de que conteúdo global significa, por definição, conteúdo em inglês.
Como os analistas de entretenimento MIDiA e Glance destacam, o aumento de histórias de sucesso “local para global” – em oposição a apenas global para local – é um fenômeno crescente, pois os players globais podem fornecer a plataforma para grandes sucessos.
O sucesso de Round 6, por exemplo – o lançamento original de maior sucesso da Netflix – faz ainda mais sentido quando levamos em conta a influência global do K-pop e a influência duradoura do design e da estética coreana nos videogames. O conteúdo em idioma local em vez de em inglês pode encontrar uma base de fãs global, como demonstram séries como Lupin (idioma francês), La Casa de Papel (espanhol) e Dark (alemão).
O que pode parecer um interesse ou tópico de nicho em um país pode se tornar um fenômeno global se esse nicho for explorado em vários mercados. A facilidade de distribuição global torna o conteúdo de nicho escalável e potencialmente lucrativo.
Há uma demanda crescente pelo novo e pelo inexplorado, e um aumento significativo nas plataformas globais licenciando programação em idioma local, tanto para mercados locais quanto para distribuição global em potencial.
5G E A BATALHA POR CONTROLE – Embora a difusão do 5G aumente o uso de streaming por meio de redes móveis, é improvável que o 5G substitua as redes domésticas. Um roteador central ainda será necessário na maioria das residências devido ao grande número de dispositivos conectados. Pode ser que o próprio roteador seja 5G, mas o conceito de rede doméstica permanecerá.
A ascensão da TV por streaming, sem a necessidade de caixas e dispositivos conectados para transmitir conteúdo, faz com que a batalha pelo controle do próprio aparelho de TV como o principal portal de entretenimento se intensifique. Isso está levando os players de mídia a lançar seus próprios equipamentos de TV no mercado: Sky, com Sky Glass, e Amazon, com seu Amazon Fire.
Isso representa um passo significativo para as empresas de mídia que tentam integrar verticalmente o modo como seu conteúdo e publicidade são distribuídos. Também apresenta oportunidades com potencial transformador para a segmentação da publicidade.
A audiência enfrenta uma crescente escolha de experiências; sua relação com o vídeo é moldada por suas necessidades. Como resultado, a forma e a natureza da experiência do espectador ao longo dessa década serão uma mistura de diferentes formas de visualização – com profundas implicações para janelas de conteúdo, monetização e publicidade.
A ideia de ver “tudo de uma vez” também está com os dias contados, segundo o estudo. Disponibilizar uma série totalmente nova para assistir (ou “maratonar”) imediatamente foi uma premissa importante, mas cada vez mais incomum.
O Paramount +, o Disney + e o Prime Video agora usam principalmente estratégias de lançamento semanais para seus originais mais importantes, com novos episódios em um dia semana específico (geralmente às sextas-feiras). Os lançamentos semanais de episódios criam discussões em torno do programa e, potencialmente, fidelizam os assinantes por mais tempo, aumentando a receita de assinaturas.
Embora a pandemia tenha sido um grande impulso para os serviços SVOD, quantas assinaturas uma família pode pagar antes que os serviços financiados por anúncios sejam mais atraentes?
O SVOD está enfrentando uma batalha pelo bolso do consumidor. À medida em que a Netflix ganhou relevância na última década, o refrão constante de muitos analistas era que o modelo de negócios SVOD era insustentável: um serviço puramente financiado por assinatura nunca poderia ser lucrativo sem alguma receita de publicidade.
O Prime Video da Amazon tem um modelo diferente e ligado à promoção do serviço de entrega via Amazon Prime. A Apple TV+ está presente principalmente para impulsionar as vendas de dispositivos Apple. No entanto, para a maioria das empresas como a Netflix e o Disney+, os serviços de VOD precisam fornecer retorno direto sobre seus investimentos.
Assim, o debate sobre publicidade continua, alimentado pela saturação do mercado de SVOD e preocupações sobre a sustentabilidade dos negócios.
Como isso afeta os serviços atualmente dependentes de assinatura? Os especialistas que argumentam que a publicidade é inevitável podem muito bem ter em mente o modelo de TV paga, em que os clientes pagam uma assinatura por conteúdo exclusivo que, no entanto, tem publicidade. Mas a ausência de publicidade é uma atração importante para muitos assinantes, principalmente em mercados como os EUA, com cargas excessivas de anúncios em canais comerciais. Está cada vez mais evidente que o caminho para os serviços SVOD é lançar opções separadas com financiamento de anúncios: o mesmo serviço, mas com um nível de assinatura mais baixo subsidiado pela receita de publicidade.
Em última análise, trata-se de plataformas que buscam outras alternativas de receita sem prejudicar sua proposta principal.
A posição da Netflix em publicidade mudou de “nunca” para “nunca diga nunca” para finalmente anunciar em 2022, pós “impulso” pandêmico e o número de assinantes caindo pela primeira vez, o lançamento iminente de sua própria opção de preço mais baixo subsidiado por publicidade.
Embora os espectadores potencialmente busquem limitar seus gastos com assinaturas, a maioria dos streamings de VOD em aparelhos de TV está em ambientes inacessíveis para a publicidade convencional, o que é um motivo de preocupação. Nos próximos anos, anunciantes e agências buscarão cada vez mais alternativas aos anúncios convencionais para alcançar e se conectar com seu público-alvo.
A menos que outras abordagens sejam adicionadas ao mix de mídia, existirá o perigo de se criar um sistema com duas opções, no qual aqueles que podem pagar para evitar anúncios o fazem, deixando um público enviesado para publicidade, alienado pelo excesso de frequência.
DESAFIOS – A distribuição por IP impulsionará o product placement ( referência em inglês para estratégia de marketing indireto ao inserir imagem de produtos de forma natural dentro de filmes ou séries). Uma solução óbvia para esse desafio é integrar de forma mais efetiva publicidade e conteúdo por meio de patrocínios, product placement e branded content (conteúdo produzido pelas marcas).
O product placement vem crescendo na última década, com a Bloomberg projetando um aumento de 14% em 2021, chegando a US$ 23 bilhões. Quase 75% de todos os programas televisivos dos EUA têm alguma forma de product placement, na busca por um público difícil de alcançar através das formas convencionais de publicidade.
O product placement dinâmico – que permite que um produto, painel ou tela apresentados no conteúdo sejam substituídos ou sobrepostos por uma marca ou anúncio diferente – também está crescendo. Nos EUA, a NBC planeja editar anúncios diretamente em programas do seu serviço de streaming Peacock. A Amazon já está fazendo isso na pós-produção, com product placement virtual integrado a programas como Bosch, Jack Ryan e Reacher. Isso poderia até ser feito em arquivos de TV e filmes clássicos.
CONTEÚDO LOCAL – Os espectadores enfrentam uma escolha cada vez mais polarizada entre conteúdo global, proveniente de grandes empresas de mídia global verticalmente integradas, que chegam direto ao consumidor, e de conteúdos locais ou regionais. Há uma preocupação crescente com a capacidade de competição das marcas de mídia nacionais e regionais. Eles deveriam dobrar os gêneros em que são mais capazes de competir (notícias, esportes, eventos, entretenimento, reality, etc.) e ceder o espaço de conteúdo roteirizado para as empresas globais? É importante desafiar a ideia de que conteúdo global significa, por definição, conteúdo em inglês.
O público está cada vez mais à vontade com conteúdo legendado. Essa é uma grande mudança cultural para o setor, que anteriormente se concentrava em refazer séries de sucesso com talentos locais ou dublagem de áudio, com muito sucesso. No entanto, a presença de legendas em vídeos de redes sociais, muitas vezes consumidos com o som silenciado, pode ter ajudado a promover uma geração que realmente prefere o texto como parte da experiência de visualização de vídeo.
TRANSPARÊNCIA – Os desafios de um mundo pós-cookies são amplificados por “batalhas pela privacidade” entre empresas que buscam monetizar os dados dos usuários e aquelas que priorizam a privacidade dos clientes. Isso se correlaciona claramente com os modelos de receita das empresas de tecnologia: elas estão buscando principalmente receitas com anúncios ou estão vendendo hardware e software?
A próxima legislação europeia (a Lei de Serviços Digitais) obrigará as empresas de tecnologia a divulgar os algoritmos que usam para segmentação, enquanto a Lei de Mercados Digitais dará aos publishers e anunciantes o direito de acessar os dados não agregados das plataformas para permitir que validem diretamente o desempenho das campanhas.
O estudo prevê um aumento da necessidade das marcas investirem de forma importante em suas próprias atividades de dados primários consentidos, com investimentos sólidos em sistemas de CRM para facilitar estratégias diretas ao consumidor. Esta é a nova oportunidade de valor para as agências. Elas estão construindo plataformas digitais complexas para as marcas controlarem o funil/jornada do usuário cliente. Na recente pesquisa global da Kantar com anunciantes, 78% dizem que planejam fortalecer as plataformas de dados que usam para entender e segmentar clientes por meio de seus próprios dados primários.
Isso parece esboçar uma imagem fascinante do futuro, segundo a pesquisa. As próprias plataformas de mídia, assim como as marcas, estão se movendo em direção à integração vertical e direta ao consumidor e as agências estão mudando para uma prestação de serviços mais completa para ajudar marcas a gerenciar isso. Isso cria tensão no ecossistema de mídia tradicional, mas vincular esses conjuntos de dados pode oferecer grandes oportunidades.
Uma palavra oferece a solução para toda a incerteza sobre rastreamento e segmentação de publicidade: consentimento.
No centro da legislação de privacidade está o desejo de transparência: deixar claro para a compreensão dos consumidores quais dados estão sendo coletados e como estão sendo usados, para que possam dar consentimento. Existem muitos desafios em torno dos dados do consumidor, rastreamento, segmentação e privacidade, mas talvez a questão mais fundamental que moldará a publicidade nos próximos anos seja: de quem são os dados?
*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural e Perfil de Patrocinadores, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos ou ações, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.
LEIA TAMBÉM
Executivo Detalha o Mapeamento da Indústria Criativa