Recentemente, o Ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a destruição de quatro obras jurídicas publicadas entre 2008 e 2009, que contêm trechos preconceituosos contra a comunidade LGBTQIA+ e as mulheres, em ação movida pelo Ministério Público Federal.
Tal decisão está arvorada no argumento de que as publicações “desbordam do exercício legítimo dos direitos à liberdade de expressão e de livre manifestação do pensamento, configurando tratamento degradante”.
É notório que os livros apresentam fragmentos abomináveis; contudo, a decisão de destruí-los ampara-se em premissa totalmente equivocada: ao STF, supostamente caberia a sublime função de erradicar discursos que, aos olhos da Corte, ultrapassem os limites abstratos da liberdade de expressão.
À guisa de controle da moralidade, a decisão pode representar, na verdade, uma forma de censura – a Constituição Federal admite a plena liberdade de expressão, de modo que cada cidadão pode manifestar quaisquer ideias, por mais absurdas e impopulares que sejam.
Não se olvida do fato de que nenhuma prerrogativa é absoluta; entretanto, até mesmo quando o exercício da liberdade de expressão viola direitos de terceiros – podendo atrair a responsabilização cível e/ou criminal -, não se admite censura prévia.
Malgrado o conteúdo mencionado pelo Ministério Público Federal apresente trechos totalmente reprováveis, por outro lado, não se pode conferir uma carta branca ao STF para definir, com base em elementos subjetivos, quais obras podem ser acessadas pelo cidadão.
O tema inevitavelmente nos remete à célebre obra “O Nome da Rosa”, de Humberto Eco, na qual os personagens William de Baskerville e Adso de Melk vivenciam uma realidade assustadora, em que a Igreja Católica controla rigorosamente todo o conhecimento literário e guarda a sete chaves tudo o que considera “herege”.
Guardadas as proporções, ao determinar a destruição de livros sob a ideia de proteção da sociedade contra comportamentos abjetos, o STF está, na verdade, contrariando o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, que dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.
Como dizia o juiz Willian O. Douglas, da Suprema Corte americana: “não há liberdade de expressão, no sentido exato do termo, a menos que haja liberdade para opor-se aos postulados essenciais em que se assenta o regime existente”.
Não se trata de concordar com o conteúdo das obras (longe disso), mas apenas de reconhecer que não cabe ao Judiciário determinar sua destruição, por ausência de previsão legal.
Tanto que, para fundamentar sua decisão, o Ministro destacou o caso “Ellwanger”, de 2003, em que o STF negou Habeas Corpus a um editor condenado pela publicação de obras de cunho antissemita, sendo classificado na época como crime de racismo. Ocorre que, naquela hipótese, a Corte entendeu que a liberdade de expressão não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência – mas, diferentemente do caso tratado neste artigo, não houve nenhuma ordem para destruição de livros.
Em 2015, a própria Corte proferiu decisão emblemática ao declarar constitucional a publicação de biografias sem autorização prévia. Naquela oportunidade, a Ministra Carmen Lúcia foi categórica: “não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo a sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a história, que se consegue cumprir a Constituição”.
Ao fim e ao cabo, se fosse admitida a interpretação equivocada de que cabe à Suprema Corte definir o que pode ser lido pelas pessoas, não seria absurdo afirmar que estamos realmente nos aproximando da distopia ilustrada em “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, em que o Estado, adotando um esforço para proteger a sociedade da corrupção de ideias, acaba incinerando o pensamento crítico.
* É Sócio fundador do Stéfano Ferri Advocacia, instrutor da 6ª Turma do Tribunal de Ética da OAB/SP e membro da Comissão de Direito Civil da OAB – Campinas.
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