Eis a Prova Definitiva Que Mostra Para Onde Vai o Dinheiro da Lei Rouanet

Eduardo Martins*

 

R$ 28.002.782.144,30

Esse foi o valor que proponentes captaram de patrocinadores para viabilizar seus projetos culturais, via lei Rouanet, de 1993 a 2023.

Se tanto número está atrapalhando a vista, ele pode ser resumido em 28 bilhões de reais.

O Estado abriu mão de 25,9 bilhões, em forma de renúncia fiscal, e a iniciativa privada entrou com apenas 23,5 milhões. Em média a contribuição privada é somente 1% do montante anual.

Para quem acha que o subsídio de 25 bilhões em 20 anos é muita coisa, é bom saber que o total da desoneração fiscal oferecida pelo Governo, na forma de isenções e reduções de impostos, atingiu o montante de R$ 581 bilhões em 2022, o que representou 5,9% do Produto Interno Bruto (PIB), conforme dados do Tribunal de Contas da União, beneficiando, principalmente, os setores da indústria, serviço e agropecuário. Foram R$ 461,1 bilhões de benefícios tributários e R$ 120,4 bilhões de benefícios financeiros e creditícios. A renúncia fiscal pela lei de incentivo à cultura foi de R$ 2,9 bilhões em 2023.

O Observatório Itaú Cultural desenvolveu método para mensurar qual é o tamanho da economia da cultura e da economia criativa (ECIC) no Brasil e chegou à conclusão de que ela representa 3,11% do Produto Interno Bruto, o que significa o manejo anual de R$ 230 bilhões. Já a indústria automobilística respondeu por 2,1% do PIB (embora esse valor atualizado já esteja em torno de 3%). O Observatório avaliou os números de 2020, em meio à pandemia, o que faz supor que os números de agora devam ser superiores.

E 2023 foi um período de recordes quando se analisa o que aconteceu durante o ano com o incentivo fiscal federal. E aconteceu que:

Foi o ano em que mais se conseguiu captação junto às empresas: R$ 2,29 bilhões (desde 2021 entrou na casa dos R$ 2 bilhões).

Maior número de projetos apresentados: 10.726. (maior havia sido em 2007: 9.402)

Maior número de projetos com captação: 4.130. (Maior tinha sido em 2011: 3.754)

Maior número de verba solicitada por proponentes: R$ 16,6 bilhões. (Importante não confundir com liberada ou aplicada). Recorde anterior era de R$ 3,3 bilhões em 2022.

Maior número de empresas participantes como patrocinadoras: 4.158 (maior tinha sido em 2022: 3.871)

Algumas áreas tiveram mais projetos com captação, a saber: Artes Cênicas (1.402); Artes Visuais (423); Museus e Memória (188); e Música (1.163). Humanidades, com 501 projetos, não superou o recorde de 2011 (658), assim como Audiovisual, com 293 no ano passado e 462 em 2008.

Quem também não superou o maior índice de apoio anual foi o envolvimento de Pessoa Física, quando 10.926 pessoas resolveram direcionar verba para algum projeto, número longe dos 19.852 que o fizeram em 2011.

AINDA É POUCO Mas, com tanto dinheiro, empresas e pessoas envolvidas, o que é feito com a verba oriunda da renúncia fiscal? Quem se beneficia? Que tipo de projetos são realizados com ela?

A Marketing Cultural/Valor Cultural buscou respostas para essas questões analisando as captações feitas durante o ano pelos 2.896 proponentes que conseguiram algum sucesso no patrocínio, mesmo quando o valor tenha se resumido a 1 Real.

Antes disso é importante ressaltar que todos esses números refletem um ambiente ainda pequeno frente ao potencial de patrocínio que pode ser alcançado. Exemplo: existem cerca de 150 mil empresas que trabalham sob o regime de Lucro Real, o único aceito pela Receita Federal como aptas a utilizar a lei de incentivo, e só 4 mil utilizam o benefício proporcionado pela lei Rouanet. É certo que muitas dessas companhias são de pequeno porte, porém mesmo elas podem conseguir apoios.

No caso de Pessoa Física pode-se ter ideia de quanto pode ser alcançado com doação ou patrocínio entre aquelas que declaram o Imposto de Renda pelo formulário completo, necessário para utilização da lei: em 2023 foram feitas 60,4 milhões de declarações, sendo 32,4 milhões pelo formulário completo (53%,7 do total).

Cada declarante com imposto a pagar pode abater até 6% do total devido, caso apoie um ou mais projetos culturais enquadrados na lei Rouanet.

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O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES– O levantamento feito pela Marketing Cultural identificou a natureza jurídica de cada proponente que conseguiu sucesso em 2023 e separou a análise em três setores: EMPRESAS –Todas aquelas classificadas como Ltda, ME, Eireli, EPP. Grande parte dos proponentes são empresários individuais; ENTIDADES – Todas as que se classificam como Instituto, Fundação ou Associação, esta a que mais se destacou. São organizações sem fins lucrativos; PESSOAS FÍSICAS – São as que cadastraram projeto por meio de seu CPF e conseguiram algum tipo de apoio.

Conforme pode-se ver pelo quadro abaixo, as empresas estão dando preferência de patrocínio para organizações sem fins lucrativos e aí se incluem Museus, Centros Culturais, Orquestras, assistenciais como Gerando Falcões, desfiles como Escolas de Samba e Galo da Madrugada, Casas de Cultura, de livro e leitura, de criar Cinema e TV, festas como a da Uva, de Dança formativa como a Edisca em Fortaleza ou Escola do Teatro Bolshoi em Joinville (SC), município que também abriga o maior Festival de Dança do País. Elas abocanharam 60% do volume total em 2023.

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FONTE: Salic

Também é interessante observar que a quantidade de patrocinadores que apoiaram empresas do setor cultural e as entidades foi a mesma – com a diferença de uma apenas – mas o valor investido foi bem diferente, como se vê nos quadros abaixo.

gráfico, lei rouanet, entidades, empresas, pessoa física
Valores em Reais. Fonte: Salic

Na lista dos que conseguiram patrocínio em 2023 a primeira empresa aparece na posição 40, já que as 39 iniciais foram ocupadas ou por Institutos, ou por Fundações ou por Associações, embora o Instituto Cultural Vale figure em três posições por atender projetos diferentes.

A primeirona da lista, campeã de arrecadação, foi a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – Fundação OSESP, que captou no mercado R$ 41.084.689,06 a fim de viabilizar o 53º Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão e os planos anuais de 2023 e 2024. Se o plano anual de 2023 conseguiu R$ 5 milhões, foi o de 2024 que rompeu a boca do trombone – foram R$ 34 milhões alcançados junto a 78 Pessoas Jurídicas e 524 Pessoas Físicas (olha elas aí).

E os maiores contribuintes da orquestra no ano foram Google (R$ 5,2 milhões) e Facebook (R$ 2,1 milhões) tendo ao lado o Itaú Seguros (R$ 3 milhões) e CA Investment Brazil S/A (subsidiária da canadense Paper Excellence Brasil, não investidora direta), que estreou como patrocinadora em 2023 direcionando R$ 2 milhões para a Orquestra e mais R$ 1 milhão para a Bienal Internacional do Livro de São Paulo.

A pessoa física mais generosa foi Patrice Philipe Nogueira Baptista Etin, que é Presidente da GTM Holdings S/A (que foi adquirida pela Caldic Latam) , Presidente do Grupo Big Brasil S/A, sócio diretor da Advent do Brasil Consultoria e Participações Ltda. que presta serviços de consultoria para Advent International e Presidente da Allied Tecnologia AS. Contribuiu com R$ 100 mil.

Ainda no campo das orquestras, busca indicou 28 beneficiadas, entre grandes e pequenas. A Orquestra Sinfônica Brasileira captou R$ 22 milhões e o Coro e Orquestra de Câmara de São Brás apenas R$ 4,8 mil.

Quando se busca por Museu, aparecem 34 ocorrências e aí estão os grandes como MASP (R$ 35 milhões), o de Arte Moderna também de São Paulo (R$ 16,6 milhões) e o Museu Nacional do Rio de Janeiro, que recebeu colaboração de R$ 11 milhões no ano, mas sua reconstrução foi quase toda bancada via lei Rouanet.

Para se ter noção da força da lei nesse setor, o Instituto Inhotim é o maior campeão de captação anual, pois ninguém conseguiu bater seu recorde de 2020, quando viabilizou seu Plano Anual com nada menos do que R$ 122 milhões.

Quem menos teve sucesso em 2023 foi a Associação dos Amigos do Museu de Arte do Rio Grande Ado Malagoli, que teve aprovado o valor de R$ 1 milhão para realizar uma exposição, mas só conseguiu R$ 8,9 mil, depositados por três Pessoas Físicas.

Mas entre os 40 maiores captadores estão Fundações ou Institutos de empresas como João Deere, CSN e Vale, Museu das Favelas, Associação Pró-Cultura e Promoção das Artes, Instituto Artium de Cultura, Associação de Cultura, Educação e Assistência Social Santa Marcelina, Sustenidos e várias outras entidades de apoio à arte, à cultura e ao tecido social.

Entre as intermediárias pode-se destacar que 181 organizações captaram na faixa de cem mil reais, entre elas a Associação de Arte e Ensino Superior, Futebol Clube Pardinho, Associação Cristã para Desenvolvimento Humano e Associação das Meninas Cantoras de Lavras.

Escolas de samba também foram subsidiadas, entre elas a Liga da Escola de Samba do Rio de Janeiro (R$ 2 milhões), a Liga das Escolas de Samba de São Paulo (R$ 440 mil), Grêmio Recrativo Escola de Samba Dragões da Real (R$ 747.392), Beija Flor (R$ 600 mil) e Liga Independente das Escolas de Samba de Joaçaba e Herval D’Oeste (R$ 481.500).

No cômputo geral das entidades, o último posto ficou com a Associação dos Migrantes Indígenas Roraimo – AMIR. Teve aprovado R$ 1 milhão para criar a Orquestra Sinfônica e Coral Música Sem Fronteiras, mas só conseguiu 1 centavo. O Instituto Maria Edite da Silva Casa das Marias, do município de Taquarana, em Alagoas, viveu a mesma situação, com a diferença que foi autorizada a captar R$ 2,2 milhões para ministrar curso de formação musical para mulheres de baixa renda, de 10 a 18 anos, mas não conseguiu sensibilizar apoiadores – também ficou só com 1 centavo. Esses projetos foram ajustados pelo sistema do MinC como sem captação.

Foram 1.273 organizações que conseguiram algum tipo de apoio em 2023, com captação total de R$ 1.368.566.708.

Vê-se que Empresas teve um captador a mais do que Entidades (mas o valor foi diferente). Fonte: Salic

EMPRESAS – A Mana Produções, Comunicação e Eventos Ltda está registrada como Empresa de Pequeno Porte (EPP), situada no bairro Cidade Mãe do Céu, no município de São Paulo, e teve o privilégio de ser a companhia que mais captou patrocínio durante 2023. Mas para quem é do mercado não há surpresa – ela gerencia há muitos anos a realização do Festival de Parintins (AM) – aquele que anualmente trava a disputa eterna entre os bois bumbás Garantido e Caprichoso – reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural e Artístico Nacional e Patrimônio Cultural do Brasil pelo IPHAN.

A Mana Produções já captou cerca de R$ 50 milhões via lei de incentivo e situou-se no topo de empresas captadoras devido aos R$ 7.511.900,45 que conseguiu no ano para sustentar um outro projeto (Apresentações das Tribos Munduruku e Muirapunima em Juruti) e os planos anuais do Festival para 2023 e 2024. Para este último maiores patrocinadores foram Arosuco, que pertence à Ambev (R$ 2,3 milhões), Quixabá Empreendimentos, do Bradesco (R$ 1,6 milhão) e TecToy, fabricante de games (R$ 1,2 milhão). Total captado para essa versão: R$ 5,1 milhões.

Bois de Parintins. Festival virou Patrimônio Cultural do Brasil. (Foto: Aguilar Abecassis)

Entre os captadores de 2023, somente três empresas intrometeram-se entre as entidades na lista dos 50 maiores. A citada Mana, a Atual Produções e a IMM Live Ltda. A Atual captou R$ 6,4 milhões para Elvis – Musical Revolution e a IMM Live obteve R$ 6 milhões para Priscilla, Rainha do Deserto, também um musical. Essa é uma área que o Grupo Bradesco domina – é sempre o maior patrocinador desse gênero.

Há uma grande quantidade de proponentes que possuem empresas individuais e quem teve maior sucesso dentro dessa natureza jurídicas foi a Sinapse Produções Contemporâneas, nome fantasia da Sociedade Empresária Limitada Debora Alessandra Costa de Oliveira. É de Belém, do Pará.

A Sinapse propôs a itinerância da Bienal das Amazônias nas cidades de Manaus (AM), Macapá (AP), Marabá (PA), Canaã dos Carajás e São Luís (MA) e encontrou dois superpatrocinadores: a Nu Financeira (Nubank), que depositou R$ 4,4 milhões, e a Shell, que contribuiu com R$ 1,5 milhão. Com isso ocupou o 51º posto entre os proponentes com maior sucesso em 2023, feito realçado por ser empresária individual.

O próximo da fila nessa condição também é do Pará. A Prisca Produções é o nome fantasia da Sociedade Empresária Limitada Gerson de Siqueira Dias Junior, que captou R$ 4,4 milhões, que incluíram a Programação Cultural da Conferência Nacional das Favelas, e a 11ª edição festival multicultural Psica, que valoriza artistas e grupos folclóricos de Carimbó, e mais uma vez teve apoio majoritário da Nu Financeira, com R$ 3 milhões, e da Petrobras, sendo que essa estatal depositou R$ 1,1 milhão em 14 de dezembro de 2023 e outro R$ 1,4 milhão em 29 de janeiro de 2024.

Empresas classificadas como Ltda são responsáveis pela realização de grandes eventos como BR Projects (Prio Blue e Jaz Festival), Bex Feiras e Eventos Culturais (ArtRio), Ampla Eventos (Disney Magia e Sinfonia), Tom Maior (Prêmio da Música Instrumental Brasileira, Festival de Humor), D+ (OpenAir) e Aventura Teatros, com o musical Noviça Rebelde.

Com naming rights comprado pela Vibra, esse tradicional evento agora chama-se Vibra Open Air (imagem Divulgação)

Elas (e outras nessa linha) são responsáveis pelas grandes peças de teatro, musicais, shows, festivais, concertos internacionais, exceto eventos como Rock In Rio e Lollapalooza, realizados sem leis de incentivo (o que sempre deve ser).

Foram 1.274 empresas que conseguiram pelo menos um real de patrocínio e movimentaram R$ 885.086.090 durante o ano.

PESSOAS FÍSICAS – Proponente tem a opção de utilizar seu próprio CPF para solicitar aprovação do MinC a um projeto cultural, mas necessita provar que tem histórico profissional ligado ao mercado da cultura. Sob essa condição, 349 Pessoas Físicas conseguiram captar R$ 36.571.877 em 2023.

E no topo dessa lista figura Berenice Maria Mendes Nascimento, que teve na Kinross Brasil Mineração S/A um parceiro fiel para bancar as duas edições do evento literário Contar e Recontar Histórias para Encantar e Transformar Ideias, somando R$ 1,3 milhão. Proponente é de Paracatu (MG).

O segundo colocado captou menos da metade, mas também obteve sucesso para suas duas edições do “Identid’Arte”, iniciativa sociocultural voltada para crianças e jovens, com a oferta gratuita de oficinas de Música (flauta doce, violino e viola clássica), Dança e Teatro. A edição 2024 obteve apoio da Itaminas (R$ 290 mil) e Magnesita (R$ 250 mil). No total esse proponente, sediado em Ibirité (MG), captou R$ 690 mil.

Thayse Cancela Christo de Souza não conseguiu atrair patrocinadores para seu projeto Natal Quebra Nozes – Um Roteiro de Natal, exceto um colaborador que depositou cinco reais. Mas com o Festival 100 Anos de Cultura em Jundiaí – História, Cultura e Tradição, a história realmente foi outra. Thayse viabilizou o Festival com R$ 493 mil dos R$ 589 mil autorizados, atraindo 10 empresas, com a Sicoob Seguradora à frente, depositando R$ 154 mil. Proponente é de Avaré, também Minas Gerais.

UTOPIA – Não há outro instrumento jurídico que impulsione tanto a cultura como a lei Rouanet, mas ela criou um vício que será difícil combater para quem defende que marketing cultural é uma ferramenta de valorização de marcas por si só, ainda mais agora onde aflorou os conceitos de Responsabilidade Social e Sustentabilidade.

Esse instrumento, porém, por causa da lei, virou sinônimo de patrocínio com renúncia fiscal e disseminou a pergunta obrigatória que faz qualquer investidor: “seu projeto tem lei de incentivo?”. Se não tiver, já era. Ou estará perto disso.

A prova é que companhias utilizam esse mecanismo apenas para usufruir do incentivo e a maioria nem se preocupa em informar o que está patrocinando.

Perdem, assim, a oportunidade de gerar empatia com o público e consumidores e, para fazer isso, não é necessário empurrão do Governo.

Mas esperar que elas apoiem sem incentivo fiscal virou uma utopia.

*É Editor-Chefe de VALOR CULTURAL/Marketing Cultural, que têm entre seus propósitos dar visibilidade a bons projetos ou ações, valorizar empresas que praticam patrocínios conscientes e apontar aquelas que fingem ser o que não são no campo da Responsabilidade Social.

OBS: Os dados citados nessa matéria foram pesquisados até 19/02/2024

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CRÉDITO

Imagem da homepage é de um dos adereços da Escola de Samba Beijaflor para o desfile de 2024 (foto Divulgação)

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